segunda-feira, 1 de maio de 2006

O SILÊNCIO DOS MARCHAS LENTAS

Tenho apreço pelas pessoas que falam pouco. As pessoas que falam demais acabam falando demais também delas mesmas, o que faz com que em duas ou três conversas você descubra quase tudo da vida delas, salvo um fato desses bem cabeludos que a pessoa em questão tenha cometido em um passado remoto. Vai-se o charme rapidinho. Tenho uma tia-avó que conta para qualquer um que ela foi operada das joanetes aos cinco anos de idade. Ou seja, há 81 anos, tempo suficiente para a história ficar enjoativa até para os pés dela, maiores vítimas da situação. Ela é solteira, e talvez a eloqüência verborrágica dela explique muita coisa sobre esse fato.


Quando pequeno, defronte à minha casa morava um casal cinqüentão com uma filha trintona. Eles eram absolutamente silenciosos e tinham um gato siamês homossexual, que vira e mexe era flagrado fazendo amor com o gato do outro vizinho, sempre no papel da donzela da relação. Pudera, o nome do bichano era Fluf, e com um nome dessas não se espera nada além da perobagem exacerbada. Mas não era do gato maricas que eu queria falar.


Pois bem, os três simplesmente não emitiam sons. Fui ouvir a voz de um deles somente quando um amigo meu resolveu dar cabo de velhas Havaianas arremessando-as no telhado da casa dessa família. No dia seguinte, a dona da casa veio ter conosco pra dizer que um par de Havaianas amarelas quebrara algumas telhas no dia anterior. E então soubemos que não se tratava de uma família de mudos.


Além de pouco afeito às cordas vocais, o pai deles era eletricista e tinha um jeitão meio paradão, de quem chega em casa e senta ao pé do portão pra fumar um cigarro e ver a vizinhança chegar do trabalho. A profissão e o peculiar costume quotidiano fizeram meu pai apelidá-lo de "Marcha Lenta", num arroubo de humor negro que o Papai Vives tem a cada ano bissexto.


Mas ninguém é calado impunemente. Parece que todo mundo nasce com sua própria cota de sons a ser emitida em vida, e disso nem a família Marcha Lenta teve como escapar. Eles tinham um Corcel I vermelho cereja na garagem, daqueles bem antigos e barulhentos. O Sr. Marcha Lenta saia para o trabalho pontualmente às seis da manhã, e esquentava o Corcel todos os dias por dez enlouquecedores minutos. Eu e os amigos da rua apelidamos o carro de "O Mausoléu do Marcha Lenta".


Fosse só o Mausoléu o problema e estaríamos bem, mas o Sr. Marcha Lenta tinha um irmão pinguço que eventualmente dormia na casa dele. Não um pinguço com glamour como eu e os meus amigos atuais, que vamos ao Ibotirama xingar o Lúcio Ribeiro, mas desses pudins de cachaça que não podem fumar para não correr o risco de entrar em combustão. Sempre chegava em casa emitindo sons que, suponho, eram de músicas sertanejas. Essa cara também nos foi apelidado como "Santa Bebedeira". Certa manhã ensolarada de sábado, jogávamos bola quando o Santa Bebedeira subiu a rua vindo do Bar do Flor com uma marmita em mãos, com passos de tartaruga e chamando Jesus de Genésio. Não deu outra: ele estava tão bêbado que enfiou a marmita no poste, sujando a calçada de arroz e feijão, para nosso deleite. É por isso que nos odiava. Mas um belo dia, enquanto jogávamos Super Trunfo na calçada, ele veio fazer as pazes dizendo que qualquer dia nos convidaria para assistir uns filmes de bangue-banque na casa dele.


Acho que uns bons 15 anos separam esses fatos da tarde de hoje, quando abri a janela e dei de cara com com a casa dos Marcha Lenta. Eles se mudaram faz tempo, ninguém sabe pra onde. O Santa Bebedeira morreu de cirrose há uns 10 anos. Na sacada, reformada, um escandaloso chiwawa fêmea insistia em se fazer presente para a vizinhança, enquanto uma voz de dentro berrava: "Carina, calada!". Interessante a dissonância que o tempo provocou naquele espaço. Acho que a lembrança da sutileza dos Marcha Lenta, sobreposto aos latidos ardidos da chiwawa, me fizeram gostar um pouquinho mais das pessoas silenciosas.

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