terça-feira, 21 de dezembro de 2004

CUNHANDO EPÍTETOS

Certo dia, ao ler as ofensas que Felipe Corizza (um sujeito que insiste em raciocinar com os intestinos) me dirigia em seu gueto virtual, pensei: "Preciso cunhar-lhe um epíteto". Imediatamente, caí-me em verborrágica repetição: "Cunhar-lhe um epíteto". Quanta sonoridade! Minha língua atingiu a quarta dimensão dobrando-se plasticamente para pronunciar: "Cunhar-lhe um epíteto". Do ponto de vista técnico, isso nada mais significa que inventar um apelido para um sujeito cujo sobrenome já é por si só uma bazófia. Mas resolvi pensar exclusivamente com os ouvidos, repetir a expressão e viajar. "Cunhar-lhe um epíteto". Pode significar qualquer coisa. Imagino Felipe Corizza dando pulinhos floresta adentro, tal qual um flautista de Hammerlin, à cunhar epítetos. Mais: me ocorre uma desagradável cena em que o dito cujo está vestido de Papai Noel, com suas renas de narizes vermelhos - pelo vício da bebida -, aterrissando tropegamente entre as criancinhas pobres do Glicério. E as criancinhas, felizes: "Papai Corizza, o senhor veio aqui para nos dar presentes?". "Não, toupeiras, vim aqui para cunhar epítetos".

É quando fecho a página 237 do livro O Cunhador nos Campos de Epítetos, obra desconhecida de J.D. Salinger, e apanho no criado-mudo próximo uma edição sem capa e mofada de Chapeuzinho Vermelho. Nela, o diálogo:

- Vovó Corizza, que dentes grandes a senhora tem? - pergunta Chapeuzinho.

- É para cunhar seus epítetos melhor - , ouve da Vovó Corizza a pobre menina, antes de ir parar no estômago dela.

Dias depois, em uma certa manhã, ao acordar de sonhos intranqüilos, Felipe Corizza encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. O estágio no Cidade Alerta contaminara sua personalidade. Ele tentava se mover, mas a falta de habilidade com as seis pernas fazia dele um sujeito infeliz. Era a maldição do bispo, que pagava seu salário mixuruca e o obrigava a entregar o jornal no horário. E para se ver livre da maldição, somente o beijo resplandecente de um príncipe encantado. Pobre Felipe.

Foi quando Corizza, ainda lutando para se equilibrar nas seis pernas, avistou ao longe o homem que o destino lhe reservara. Chamava-se Boris e era chefe na mesma firma onde ele estagiava. Entradas elegantes na testa, cabelos brancos apartados para trás, terno cor-de-burro-quando-foge. Boris lhe deu um ligeiro aceno. Corizza devolveu abanando as anteninhas. "Por que não nos vemos essa noite? Um chopinho e, quem sabe, depois cunhamos alguns epitetozinhos carinhosos". Ambos se encontraram na bodega Baço Verde, na rua Aurora. Foi lá que a dupla de enamorados fez do karaokê um ninho de amor, duas mãos e seis patas entrelaçadas, ao som agudo de Strangers in the Night vindo de suas gargantas.

Horas depois, no Hotel-Ritz-Agora-com-TV-a-Cores, epítetos seriam cunhados e Felipe Corizza encontraria, finalmente, sua paz. E o mundo compreendeu, e o dia amanheceu em paz.

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