sexta-feira, 7 de março de 2008

INCIDENTE NO SANTA CECÍLIA



Alguns fins de semana atrás, ocorreu-me um fato de singeleza sem par nestas matas, compartilhado com alguns amigos à época: quase fui atropelado por um anão.

Descia eu a Avenida Angélica rumo ao mercado com uma sacola de feira sob as axilas quando, ao atravessar a rua Barra Funda, um Toyota Corolla verde se jogou pra cima de mim que, estupefacto, não tive tempo sequer daquele flashback tradicional, pelo qual toda sua vida passa em sua mente antes de morrer. Dois segundos e uma freada brusca depois, encontrei-me parado com o Corolla verde a 20 centímetros de meus joelhos. A sacola de feira suava. Dentro do carro, um anão sobre um banco especial, com toda uma família ao lado e atrás - e não lembro se a família era também anã. O sinal estava vermelho para ele que, distraído, seguiu em frente até o pára-choque beijar minhas rótulas.

Fino leitor, por gentileza, faça com que neste momento a construção da imagem em sua mente dê uma volta de 360 graus com a cena congelada, tal qual Matrix. De um lado, eu, 1.95 de altura, tão branco quanto um pudim de padaria. Do outro, o pequeno homem com o volante em mãos. Não se trata apenas de um quase atropelamento. São, na verdade, duas filosofias de vida antagônicas, duas visões de mundo opostas que, frente a frente, conheceram o outro sem entendê-lo. Havia ali, a um quarteirão do Teatro São Paulo, todo um choque de dimensões: o PP contra o GG.

Caro leitor, por favor, simule agora uma câmera em contre-plongée . No visor, eu. Eu, minha camisa branca e minha sacola de feira. Papetes, mas isso você não está vendo porque a câmera está em contre-plongeé. Quase dois metros de altura, cabeça achatada nos pólos tal qual a letra Ó na fonte Century Gothic (tamanho 14, procura lá no Word). Há ainda a papada maciça, os ombros que, na hipótese de adotar o espantalhismo como profissão, certamente serviria de ninho para uma meia dúzia de tico-ticos, e também a barriga de cerveja, há tanto tempo cultivada. É a personificação do excesso, do exorbitante, a ode ao hiperbólico, uma herança assustosa da Rússia Soviética stalinista.

Do outro lado (agora a câmera em plongeé), o pequeno e honesto homem, vítima da desatenção momentânea e, antes dali, de todo tipo de piadas, crendices e dificuldades que o cotidiano impõe à sua vida compacta.

Pois bem, caro leitor, perceba o cenário curioso que se formou naquela esquina. Havia ali uma chance em milhões, talvez só repetida anteriormente quando o pequeno Davi Cardoso enfrentou o gigante Ronald Goliás (peraí, confundi pornochanchada com trechos bíblicos. Recapitulando: quando Davi enfrentou Golias e o derrubou com uma pedrada na cabeça). E lá estava o nosso pequeno Davi de Lilliput em seu Toyota Corolla, com a pedra em forma de acelerador que poderia derrubar aquela pantagruélica figura na sua frente, justamente o tipo que mais o humilha, que o trata jocosamente, que cria factóides de baixa conduta moral - o oprimido sempre carrega dentro de si o opressor.

Se o minúsculo homem apertasse ali o acelerador, passasse por cima de mim, desse a ré, passasse de novo, engatasse a primeira para atropelar em definitivo, se tornaria instantaneamente o libertador dos diminutos, homologando assim a vitória do mundo moderno sobre o passado a ser esquecido. O futuro é compacto, reduzido, sensível. Estatelado na faixa da Barra Funda com a Angélica ficaria o velho, o demodé, este mundo vagaroso e descordenado dos gigantes. E então todas as pessoas pequenas poderiam desembestar rumo à vitória, tal qual a Yoná Magalhães na cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol, e sair sem medo de ouvir anedotas nas ruas, e adaptar o mundo às suas necessidades e esperanças.

No entanto, naquela troca nada erótica de olhares assustados entre o pequeno e o grande, quem se manifestou foi o último:

- Qualé que é, fera? Tá vermelho, pô.

Assustado, o pobre pequeno disse, com a voz que saiu embargada de sua garganta playmobil:

- Desculpa, seu moço!

Nossos olhares nada eróticos se descruzaram e terminei de atravessar a rua. Ainda assustado, acendi um cigarro existencial - eu que não fumo só acendo cigarros existenciais. Quantos anos mais teremos para conhecer o desempate desta peleja? Davi fez um a zero na Terra Santa, eu empatei numa esquina do Santa Cecília. O legado das piadas de baixo calão (com trocadilho) sobreviverá.

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