terça-feira, 30 de janeiro de 2007

O IRMÃO ADQUIRIDO

"(...) Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão, Mario Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: - Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista, etc. etc. Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa e não um artista. Um cachimbo.

Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava - que sujeito indesejável, irrespirável e cínico. Eis a palavra - cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mario se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: - O Cony! O Cony!". Em suma: - com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: - era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir. Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade. Mas sentia uma angústica intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.

E quantas vezes, depois disso, Mario me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mario ia ser, e para sempre, amigo do canalha. Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: - Mario acabara de morrer. Corri para vê-lo. Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio Peregrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.

Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mario, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: - "Como foi isso?". O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando entre mesas e cadeiras - tão órfão de Mario. Foi aí e só então que entendi que a amizade os unia. O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos chorou alto, chorou forte. E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre. Era, sim, o falso canalha."

Nelson Rodrigues, 25.06.1968.

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