sábado, 20 de janeiro de 2007

MORALES, O PRESIDENTE QUE PENSA "ÃO"



Confesso que desenvolvi um hábito masoquista. Não chego a pedir para mulheres pisarem com salto agulha nas minhas costas, mas é tão nefasto quanto.

Todo dia, ao acordar, pego o Estadão com o porteiro do prédio e subo de volta para lê-lo.

Diariamente abro na página três para ver os tiítulos dos editoriais, a malfadada opinião do jornal. Os títulos já são de uma agrura ímpar, sempre a alertar para a esquerdização da América Latina ou a burrice do presidente Lula. Todo santo dia eu dou uma risadinha marota e digo para os meus botões: "Hoje vou ler essa porra só pra dar risada da direita paulistana".

Invariavelmente leio e, ao término, sou consumido por uma raiva pitbulliana. Mastigo o jornal, abro a janela e grito a plenos pulmões: "CANALHAS!!!!!!!!". No dia seguinte, o ritual masoquista se repete. O porteiro já me olha de esguio ao entregar o jornal. Pelo andar da carruagem, em poucos meses, ao abrir a janela para o fatídico grito, moradores do prédio da frente abrirão os braços em comemoração, como seu eu fosse um Pica-Pau descendo as cataratas.

Pois veja você que nesta quinta-feira eu não precisei apelar para a janela, tampouco mastigar o jornal. Veja o que saiu no editorial do jornal que pensa "ão" (assim, com minúsculas):

"Só podem aderir ao Mercosul países que adotem o regime democrático. (...) Mas a Bolívia, assim como a Venezuela, não é uma democracia. (...) Esta semana, o governador de Cochabamba, da oposição, foi obrigado a se refugiar em Santa Cruz e o governador de La Paz recebeu um ultimato para acabar com suas veleidades oposicionistas. Os "movimentos sociais" controlados por Morales estão se incumbindo de extirpar qualquer vestígio de democracia no país, no berro e na marra".

Ao que parece, os velhinhos que escrevem o editorial não lêem o próprio jornal. Ou então, uma segunda hipótese: eles vão embora bem antes de o jornal fechar. Assim, às cinco da tarde, quando se esquentam os tamborins na redação para o fechamento, eles já estão em casa com o pijama em riste, aguardando a Marileuza, a empregada de cor, botar a sopa do jantar na mesa.

Digo isso porque no mesmo dia, no mesmo caderno, cinco páginas adiante, estupefação. Eis a manchete:

"EVO REJEITO MANOBRA CONTRA OPOSITOR"

Na matéria constava a seguinte história: o governador oposicionista da província de Cochabamba (uma das palavras mais gostosas de se pronunciar de todos os léxicos latino-americanos), Manfred Reyes Villa, foi expulso da cidade pelos manifestantes pró-governo de Evo Morales. Reyes Villa, da elite branca, é a favor da autonomia das províncias perante o governo. Em outras palavras, ele não quer se subordinar ao governo central, como uma província (ou estado) deve fazer em uma democracia. Cansado de ser chutado, o povão invadiu o palácio querendo servir os ovos de Reyes Villa feito codorninhas de tira-gosto. O branqüelo se mandou para Santa Cruz, principal reduto da direita boliviana.

Acontece que Evo Morales não aceitou a tomada de poder dos populares. O motivo: Reyes Villa foi eleito, então ele que cumpra seu mandato. "O vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, qualificou de "ilegal" o governo paralelo nomeado pelos manifestantes e afirmou que reconhecê-lo significaria um rompimento constitucional", é o que diz a matéria do Estadão. Em outras palavras, exatamente o oposto do que o editorial do mesmo dia do mesmo jornal declarou. A polícia acalmou os manifestantes, que se dispersaram, e Cochabamba vive uma calmaria de Jarinu.

Apesar do orgasmo moral que tive ao notar a falha, na verdade eu fico triste. Qualquer zé mané pode dizer o que quiser no jornal, o que acaba com ares de verdade absoluta. Para os editoriais do Estadão, Hugo Chavez, Evo Morales e, agora, o equatoriano Rafael Correa, são uma espécie de Eixo do Mal Cucaracha, na qual Chavez traz para si a aura do Stalin malemolente dos trópicos a influenciar os outros índios negros favelados a tomarem a bastilha tropical.

Chavez não é um exemplo democrático, é fato, mas tem lá o seu lado bom. Morales é muito melhor. E é curioso ver o jornal como o Estado servir como paladino da democracia, logo ele que, no dia 1º de abril de 1964, organizou uma chuva de papel picado por conta do golpe dos milicos que transformaram o Brasil nisso que é hoje.

Esses milicos hoje trocaram a farda pelo pijama. O mesmo caminho poderia ser seguido pelos editorialistas do Estadão.

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