
A baiana Maria Creuza sempre foi muito bonita, mais do que o visual dos anos 70/80 desta foto sugere
Existe um conto de Jorge Luis Borges que tenho na conta de uma das duas grandes coisas que li na vida - qualquer dia escrevo sobre as duas juntas. Está no livro Ficções, que talvez seja a melhor seleção de contos que a humanidade já produziu, de As Mil e Uma Noites até a Zíbia Gasparetto.
Chama-se Aproximação a Almotásin.
Sem entrar no mérito dos mil detalhes do conto, o enredo relata a história de um livro cujo amálgama (nunca achei que fosse escrever essa palavra) fala de um estudante de Bombaim que se esconde nos mais inóspitos rincões do interior da Índia. Imagine o fiofó da humanidade e seus rudes habitantes. É lá que está o estudante. E é lá, no meio de tanta pobreza e pusilanimidade, que ocorre o grande estalo na cabeça deste sujeito. Segue o trecho:
De súbito - com o milagroso espanto de Robinson ante a pegada de um pé humano na areia - percebe certa mitigação dessa infâmia: uma ternura, uma exaltação, um silêncio, num dos homens detestáveis. "Foi como se tivesse cruzado armas no diálogo um interlocutor mais complexo." Sabe que o homem vil que está conversando com ele é incapaz desse momentâneo decoro; daí postula que este refletiu um amigo, ou amigo de um amigo. Repensando o problema, chega a uma convicção misteriosa: Em algum ponto da Terra há um homem de quem procede essa claridade; nalgum ponto da Terra está o homem que é igual a essa claridade. O estudante resolve dedicar sua vida a encontrá-lo.
Borges é douto em embromation, gosta de jogar agulhas em palheiros, e você que se vire com suas conclusões. A minha conclusão deste conto é muito particular, mas não vem ao caso. O que eu queria dizer aqui é que lembrei deste conto na última semana do ano, por conta de uma música.
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Estupidez não é exclusividade de nós, normais. Também os gênios eventualmente miram a boca e acertam a testa.
Permita-me exemplificar: Tom Jobim e Vinícius de Morais escreveram Chega de Saudade, que chegou com um swing completamente diferente do que era conhecido na música até então. Depois dela, mudou tudo na música brasileira, e o que não falta é gente pra contar esta história.
Porém, há em Chega de Saudade um trecho da letra que não deve nada a Amado Batista: Há menos peixinhos a nadar no mar do que beijinhos que eu darei em sua boca.
Não negue, é levemente retardado. Lembra aquele pagodão dos anos 90 - Raça Negra? - cujo refrão era "não faça assim, meu querubim".
Pois bem. Antes do Natal, comprei um CD da Maria Creuza, que considero fácil como uma das três melhores vozes femininas da MPB e, provavelmente, a mais sensual delas.
Aliás, digo e repito: só toma catuaba ou viagra quem nunca ouviu Maria Creuza no fone de ouvido a cantar o Samba em Prelúdio, do Baden e do Vinícius, ou Onde Anda Você, do Vinícius e de um sujeito chamado Hermano Silva. Chupa, Pfeizer.
Mas não enrolemos mais: ouvia eu o CD de Maria Creuza, quando a faixa sete entra com uma melodia das mais bonitas que ouvi nos últimos tempos.
O arranjo da canção era um pouco tosco, um bolero apastichado, mas a voz da cantora é formidavelmente guiada pela melodia. Esta inunda os ouvidos de tal forma que amoleceria os sentimentos até do poderoso, insistente e aniversariante coma de Ariel Sharon.
Um bolero romântico, de letra simples, melodia que explora a voz da cantora jogando-a lá em cima, despenca tuas sensações para baixo, para depois aninhá-la no colo da canção, parte em que o ouvinte está irremediavelmente complacente com a desilusão da cantora.
O nome da canção: Tortura de Amor. O autor: Waldick Soriano, uma espécie de antônimo de Vinícius de Moraes no que tange a sensibilidade musical.
Se o tal estudante vivesse no Brasil, poderia começar sua busca por Almotásin ouvindo música.
OBS: Aproximação Almotásin, do livro Ficções.
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