
Perguntam-me sobre minha história. Lhes contarei. Sou o fruto de uma pisadela e de um beliscão entre meus pais, uma aventura banal, fim de rastapé de interior. Nove meses se passaram e eu nasci. Tudo que sei é que desde então fiquei internado em um sanatório, donde sairia 20 anos depois. Pelo que pude apurar, não tive alta: me dispensaram porque comi a maçaneta da porta do almoxarifado. Estava com fome e não agüentava mais a péssima qualidade da comida que me davam. Eles passavam o prato de sopa cor-de-burro-quando-foge por baixo da porta do porão - onde eu dormia - ao acordar e antes de dormir. Eram as duas refeições do meu dia. Pouco comia, pois os ratos eram sempre maioria e costumavam ser mais rápidos do que eu.
Sem rumo, procurei minha mãe. Quando me viu ela disse: "Não conheço nenhum Vives. Suma daqui". Após insistência, ela vagamente se lembrou de um dia ter tido um filho. Moraria com ela por uns tempos até conseguir me arranjar na vida, o que nunca aconteceu. Todas as noites ela colocava um saco sobre minha cabeça antes de dar o beijo de boa noite. Felizmente, logo conheci minha primeira namorada, por quem perdidamente me apaixonei.
Chamava-se Rulfia, e era estivadora do porto de Mixirica da Serra - mixirica com i mesmo -, onde carregava de bigornas um navio ferreiro. Era a única estivadora mulher do porto de Mixirica da Serra. Em verdade, era a única a fazer esta função naquele local, que carregava de bigornas sempre o mesmo navio, o único a atracar no porto da cidade e que de lá nunca desatracou. Passamos a morar juntos, num chatô de sapé que ela mantinha perto do cais.
Foi com Rulfia a minha primeira noite de amor. Mas registre-se, também, que com Rulfia nunca atingí o clímax. Ela chegava cansada do porto, não gostava de fazer as preliminares e quase sempre dormia em cima de mim. Rulfia tinha crises agudas de TPM. Em uma delas, trouxe uma bigorna do porto só porque cobrei-lhe que não dormisse sobre mim durante o ato. Arremessou-me o objeto no joelho, o que me deixou levemente coxo até os dias de hoje. Mas eu amava Rulfia mesmo assim.
Porém, certo dia ela entrou no navio ferreiro com uma bigorna nos ombros e de lá nunca mais saiu. Vasculharam a embarcação toda e nada acharam. Nem sequer uma bigorna foi encontrada lá dentro, nenhuma de todas aquelas que Rulfia lá levou nos últimos dez anos, todos os dias, dez horas por dia, folgando aos domingos e dias santos. Rulfia se foi, para onde ninguém sabia, deixando uma lacuna em meus sentimentos. O mistério de Rulfia e as bigornas afugentou os habitantes de Mixirica da Serra, que abandonaram a cidade. Lá restou apenas o navio ferreiro aberto e milhares de bigornas ao lado para serem carregadas.
Vim para capital. Comecei a beber e conheci os livros. Muitos deles. Em verdade nunca soube ler, mas eu via as figurinhas. Um deles mudou a minha vida. Chamava-se Kama Sutra para Crianças: Aprenda Hoje o que Você vai Querer Fazer Amanhã, e tinha figuras tão interessantes que pela primeira vez na vida ousei querer ler. Mas nunca aprendi. Continuei bebendo, porque a bebida era o que me restara de concreto, embora líquido. Fiz dois amigos, o Mato Grosso e o Joca, que andavam jogados pela Avenida São João.
No auge de minha agonia causada pelas saudades de Rulfia e por não saber ler, prestei Jornalismo em uma faculdade de nível mediano na Avenida Paulista. E, embora analfabeto, nunca desconfiaram disso e vivem me dizendo que levo jeito pra coisa (embora talvez discorde), o que me levou a arrumar emprego no jornal-laboratório local, onde plagiei uma receita de bolo de ameixa, sem ninguém nunca ter desconfiado.
Passei a viver de frilas esporádicos em revistas de primeira, segunda e terceira categorias, o que me possibilitou fazer planos pela primeira vez na vida. Eu, Mato Grosso e o Joca nos mudamos para uma casa velha, uma palacete assobrado, e lá vivemos os grandes dias de nossas vidas. Mas um dia veio os homem com as ferramenta, o dono mandou derrubar. A casa velha, o palacete assobrado estava no nome de um tal de Aureliano Buendia, austero fazendeiro de uma cidade do interior da América Latina, casado com ninguém menos que Rulfia Vives, a carregadora de bigornas, única mulher que amei na vida. Rulfia havia fugido para a terra de seu amante, onde vive a bater suas bigornas em meio a tapetes voadores e velhas mágicas.
Nota do narrador onisciente: A última notícia que tiveram de F. Vives é que ele foi visto com outra, num Fuscão preto pela cidade a rodar, e também parado em frente ao Ibotirama, onde comia um bife de fígado com a dita cuja que, suspeita-se, seja uma americana casada de nome Catherine. Pelo que pude apurar, parece que tem muito orgulho disso.
NOT TO BE CONTINUED.
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