
O opressor vive dentro do oprimido, disse certa vez o amigo ovino e folhudo Leandro Garfunkel Beguoci. Lembro que, quando criança, ensinei os dois dóceis cachorros de minha vizinha a abocanhar uma das galinhas que habitavam o quintal dela. Não me passava pela cabeça a hipótese de que o galináceo fosse um substituto em potencial do Frolic. Apenas pensei que seria legal os cachorros levarem as galinhas pela boca a passear por aí, vejam só que menino simpático eu era. Pois bem, os cachorros pegaram gosto pela coisa e acabaram comendo as duas galinhas do quintal em menos de 48 horas, e, logo a seguir, caçaram dois gatos da vizinhança, se é que minhas sinapses ainda estão conectando corretamente as informações da zona mais empoeirada da memória.
A cena que ficou comigo foi a visão da primeira vítima, uma galinha marrom, agonizando perto do porão, e um dos cachorros, com a cara meiga de sempre, lambuzada de sangue a abanar o rabo sôfrego para mim, com cara de missão cumprida.
Talvez a tênue linha que separar o opressor do oprimido seja a mesma de tantas outras linhas que separam opostos dentro de um mesmo alguém. O conceito de vencedor e perdedor, por exemplo. Já me passei por perdedor dezenas de vezes. As pessoas com quem convivo todas um dia foram perdedores. Aposto um dedo do meu office-boy Felipe Corizza se quem está lendo isso já não se considerou um derrotado, donde conclui-se que os vencedores não existem ou vivem todos a cavalgar pelo Mundo de Marlboro.
Aos 15 anos deixei a escola pública para fazer o colegial nesta entidade mística chamada Colégio Objetivo. A única vantagem de lá era a farta quantidade de mulheres bonitas - ou, como diria Maurício Savarese, existem duas coisas que a burguesia saber fazer: dinheiro e filhas.
Todo santo dia meu pai até lá me levava num Fusca verde 65 caindo aos pedaços, carro que é o xodó dele até hoje (sempre digo que, ao morrer, Papai Vives vai escrever no testamento: "Deixo meus quatro filhos para meu Fusca verde 65"). Pois bem, além da segunda marcha quase nunca engatar na primeira tentativa, o fusqueta tinha (e tem) mais um rude defeito: ao fechar a porta do passageiro, a portinhola do porta-luvas abre, fazendo o maior escarcéu.Tamanha era a vergonha que todo dia pedia para meu pai me deixar na quadra anterior ao colégio, para que não me vissem saindo de um besouro verde e velho cujo porta-luvas se abria ao fechar a porta.
Não guardo tanto remorso disso, eu tinha 15 anos. Um belo dia você acorda maduro o bastante para, poxa, finalmente entender que o seu pai foi bancário e professor de segundo grau depois de ter tido toda a chance do mundo de virar analfabeto quando criança, destino de boa parte dos que cresceram junto com ele. Logo, não seria o Fusca verde 65 que o transformaria em um derrotado.
Foi essa a história que lembrei ao sair do cinema depois de assistir Pequena Miss Sunshine, que já está para sair de cartaz. Ao que parece, todo mundo que assiste ao filme se lembra de alguma história similar da própria família, já que, pela primeira vez desde que freqüento cinema, o público aplaudiu ao fim da sessão como se fosse uma peça de teatro.
Do filme em si não digo nada. Qualquer comentário que fizer pode estragar o prazer de assistí-lo. E fica a certeza de que é preciso se permitir perder para ser um vencedor, seja lá o que isso queira dizer pra cada um. É isso que vai dar a dosagem entre o opressor e o oprimido dentro desse bicho estranho chamado ser humano.
Posta a conclusão que se fecha com o primeiro parágrafo tal qual redação de segundo grau, voltemos com a programação normal deste que é um blogue másculo e durão.
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