sexta-feira, 29 de julho de 2005

NOTA AUTOBIOGRÁFICA DESPROVIDA DE SENTIDO

O editor de SorryPeriferia (rodeado pela argolinha) posa para fotos com colegas no Hospital de Tratamento Psiquiátrico Intensivo em 23 de abril de 1970, seis meses antes de abandoná-lo

Perguntam-me sobre minha história. Lhes contarei. Sou o fruto de uma pisadela e de um beliscão entre meus pais, uma aventura banal, fim de rastapé de interior. Nove meses se passaram e eu nasci. Tudo que sei é que desde então fiquei internado em um sanatório, donde sairia 20 anos depois. Pelo que pude apurar, não tive alta: me dispensaram porque comi a maçaneta da porta do almoxarifado. Estava com fome e não agüentava mais a péssima qualidade da comida que me davam. Eles passavam o prato de sopa cor-de-burro-quando-foge por baixo da porta do porão - onde eu dormia - ao acordar e antes de dormir. Eram as duas refeições do meu dia. Pouco comia, pois os ratos eram sempre maioria e costumavam ser mais rápidos do que eu.

Sem rumo, procurei minha mãe. Quando me viu ela disse: "Não conheço nenhum Vives. Suma daqui". Após insistência, ela vagamente se lembrou de um dia ter tido um filho. Moraria com ela por uns tempos até conseguir me arranjar na vida, o que nunca aconteceu. Todas as noites ela colocava um saco sobre minha cabeça antes de dar o beijo de boa noite. Felizmente, logo conheci minha primeira namorada, por quem perdidamente me apaixonei.

Chamava-se Rulfia, e era estivadora do porto de Mixirica da Serra - mixirica com i mesmo -, onde carregava de bigornas um navio ferreiro. Era a única estivadora mulher do porto de Mixirica da Serra. Em verdade, era a única a fazer esta função naquele local, que carregava de bigornas sempre o mesmo navio, o único a atracar no porto da cidade e que de lá nunca desatracou. Passamos a morar juntos, num chatô de sapé que ela mantinha perto do cais.
Foi com Rulfia a minha primeira noite de amor. Mas registre-se, também, que com Rulfia nunca atingí o clímax. Ela chegava cansada do porto, não gostava de fazer as preliminares e quase sempre dormia em cima de mim. Rulfia tinha crises agudas de TPM. Em uma delas, trouxe uma bigorna do porto só porque cobrei-lhe que não dormisse sobre mim durante o ato. Arremessou-me o objeto no joelho, o que me deixou levemente coxo até os dias de hoje. Mas eu amava Rulfia mesmo assim.

Porém, certo dia ela entrou no navio ferreiro com uma bigorna nos ombros e de lá nunca mais saiu. Vasculharam a embarcação toda e nada acharam. Nem sequer uma bigorna foi encontrada lá dentro, nenhuma de todas aquelas que Rulfia lá levou nos últimos dez anos, todos os dias, dez horas por dia, folgando aos domingos e dias santos. Rulfia se foi, para onde ninguém sabia, deixando uma lacuna em meus sentimentos. O mistério de Rulfia e as bigornas afugentou os habitantes de Mixirica da Serra, que abandonaram a cidade. Lá restou apenas o navio ferreiro aberto e milhares de bigornas ao lado para serem carregadas.

Vim para capital. Comecei a beber e conheci os livros. Muitos deles. Em verdade nunca soube ler, mas eu via as figurinhas. Um deles mudou a minha vida. Chamava-se Kama Sutra para Crianças: Aprenda Hoje o que Você vai Querer Fazer Amanhã, e tinha figuras tão interessantes que pela primeira vez na vida ousei querer ler. Mas nunca aprendi. Continuei bebendo, porque a bebida era o que me restara de concreto, embora líquido. Fiz dois amigos, o Mato Grosso e o Joca, que andavam jogados pela Avenida São João.

No auge de minha agonia causada pelas saudades de Rulfia e por não saber ler, prestei Jornalismo em uma faculdade de nível mediano na Avenida Paulista. E, embora analfabeto, nunca desconfiaram disso e vivem me dizendo que levo jeito pra coisa (embora talvez discorde), o que me levou a arrumar emprego no jornal-laboratório local, onde plagiei uma receita de bolo de ameixa, sem ninguém nunca ter desconfiado.

Passei a viver de frilas esporádicos em revistas de primeira, segunda e terceira categorias, o que me possibilitou fazer planos pela primeira vez na vida. Eu, Mato Grosso e o Joca nos mudamos para uma casa velha, uma palacete assobrado, e lá vivemos os grandes dias de nossas vidas. Mas um dia veio os homem com as ferramenta, o dono mandou derrubar. A casa velha, o palacete assobrado estava no nome de um tal de Aureliano Buendia, austero fazendeiro de uma cidade do interior da América Latina, casado com ninguém menos que Rulfia Vives, a carregadora de bigornas, única mulher que amei na vida. Rulfia havia fugido para a terra de seu amante, onde vive a bater suas bigornas em meio a tapetes voadores e velhas mágicas.

Nota do narrador onisciente: A última notícia que tiveram de F. Vives é que ele foi visto com outra, num Fuscão preto pela cidade a rodar, e também parado em frente ao Ibotirama, onde comia um bife de fígado com a dita cuja que, suspeita-se, seja uma americana casada de nome Catherine. Pelo que pude apurar, parece que tem muito orgulho disso.

NOT TO BE CONTINUED.

segunda-feira, 25 de julho de 2005

DAS COISAS QUE A HUMANIDADE EXAGEROU

Flagrante da família Corizza durante piquenique na Era Paleozóica: Felipe é o que mostra a bunda para a câmera

Há um momento de angústia profunda e pausa na respiração quando penso no primeiro homem que olhou para um quiabo e disse "eu vou comer isso". Apesar de minha relutância gástrica, compreendo que a humanidade um dia já padeceu de fome profunda - e ainda padece - e que o bicho-homem precisava estar aberto a novas experiências, e não é de homossexualismo que estou falando. Enfim, ele tinha que colocar qualquer coisa na boca e engolir - eu já disse que não é de homossexualismo que estou falando - tal qual um Antônio Mezenga comendo bigatinhos na floresta depois que o avião caiu.

Creio que esse raciocínio justifica não só o quiabo como também o jiló, a buchada de bode, a linguada de boi e o curanchinho do frango. Na próxima vez que você olhar torto para alguém a saborear uma jaca, pense que um ancestral seu de 75 gerações atrás pode ter comido uma similar e sobrevivido às intempéries, o que manteve de pé a perpetuação desse gene arrogante dentro de você, que te faz olhar para a jaca com cara de "isso é um tanto disgusting".

Por outro lado, percebo que houve um momento na história em que sucessivos desvios de conduta fizeram do homem o único bicho capaz de compreender que dois com dois são quatro, mas também de fazer as coisas mais imbecis como se fosse o percurso natural da vida. Por exemplo: mordo-me ao pensar no primeiro sujeito que escalou cinco quilômetros de uma montanha e, ao chegar no topo, pensou "Quebrei meus poucos dedos que não gangrenaram, mas isso foi sensacional. Porque não fazer de novo e transformar isso em uma modalidade de esporte masoquista"?

Mas o alpinismo não é nada se comparado a uma manchete que certa vez li na internet: "Flórida estuda legalizar arremesso de anões". Diz-se que na terra da Disney a prática de jogar pessoinhas à distância é tão comum que há um movimento para que tal fenômeno seja reconhecido pela Estado como um esporte. Particularmente nutro o hábito de arremessar alguns amigos em festas quando me encontro trebadaço, anões ou não, mas não encaro isso como uma modalidade esportiva, para alegria da minha amiga Karen C..

Voltemos ao quesito gastronomia e similares. Enquanto tomava capirinha no Ibotirama com três figuras interessantes no último sábado, o mais exótico deles relatou o prazer que sente ao tomar uma cachaça curtida com cobra coral falsa. Explico: coloque a pinga em vasilhame junto de uma cobra coral falsa morta. Com o tempo, o bicho vai se desmanchando e a bebida adquire gosto e coloração muito específicas. Tal fenômeno ocorre com regularidade em Minas Gerais, não com manjericão, não com pimenta: com répteis mortos.

A imagem de tal vasilhame no balcão de um boteco qualquer, ao lado do compartimento de ovos coloridos, pegou-me entre o fígado e a alma. Como diria Alberto Einstein: "Só conheço duas coisas que não têm limite: o espaço sideral e a estupidez humana".

A minha parte eu quero em pinga. Sem animais mortos.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

QUANDO A LITERATURA É MAIS COXINHA

do enviado a Parati

Se você faz uma feira de automóveis, as pessoas vão lá para discutir automóveis. Da última perua Jaguar à repimboca da parafuseta automática daquela marca coreana cujo nome você nem se lembra. Da mesma forma, ao freqüentar uma feira de coxinhas, as pessoas discutirão coxinhas. Receitas, condimentos, recheios, coxinhas lactovegetarianas, coxinha de cupuaçu com mel, Coxinheira George Foreman. Em feira de coxinha, coxinha rules. Agora siga a bolinha pulando na legenda: em feira literária, as pessoas vão lá pra discutir literatura, não é?

Claro que não, seu burro. Pelo menos não é isso o que pensam os cocotões que organizaram a III Feira Literária Internacional de Parati, a FLIP. Em verdade, o que se viu por lá foi nada além de uma overdose propagandística de lançamentos de meia dúzia de grandes editoras.
A idéia era organizar várias mesas de discussão por dia. Pois então imagine dois ou três escritores fodões sentados em uma mesma mesa, apresentados normalmente por um outro escritor fodão. Todos com livros recém-lançados, é claro. Em cada mesa, um tema a ser discutido. Até aí, a água enche a boca - e de fato não tenho nada contra o viés comercial da coisa.

Eis quando você percebe que o presunto-de-parma vira apresuntado. Após serem apresentados, o escritor A lê um trecho de seu lançamento para a platéia que pagou 17 reais para vê-los no salão principal, ou 12 para ver tudo no telão do outro lado. É aplaudido. Depois, é a vez do escritor B ler o seu lançamento. É aplaudido. Segue duas ou três perguntas. São aplaudidas. Aí os escritores vão embora aplaudidos e, no lado de fora, sentam para autografar, sob aplausos, os livros que os espectadores compraram na livraria conveniada, com os mesmos preços de São Paulo. Observando atônitos a tudo isso, nós.

Mas ninguém nos aplaudiu.

Me desculpe, mas se é pra ouvir trechos dos livros, eu entro no Submarino e leio o primeiro capítulo de cada um. Seria melhor então criarem um serviço 0900 onde uma voz feminina sensual lesse um trecho da obra escolhida.

Não se discutiu literatura. Não sei viu pessoas preocupadas em discutir tendências, um autor, uma obra que seja. Havia sim pessoas que queriam ver e ser vistas. A FLIP não passou de uma grande masturbação mental coletiva. E, apesar de ser uma feira, sequer houve local onde se pudesse comprar livros com preços mais baratos. Necas. Tudo isso em uma cidade que fede esgoto e onde o PF mais barato custa 16 reais. Um reles pastel de palmito, 5 contos. A minha paciência jogada no lixo: não tem preço.

Por outro lado, se o xis da questão era ver figurinhas tarimbadas em situações pouco usuais, isso a gente se superou. Eu mais uma figura mui falciônica seguimos Salman Rushdie pelas vielas da cidade junto de uma loira, que ele não catou, embora a dita cuja tenha feito de tudo para isso; dei duas ombradas na Zezé Polessa em ocasiões diferentes, o que provavelmente a fez pensar que "esse cara grande tá cheio de graça pro meu lado"; vários atores de teatros cujo nome a gente não lembra, mas que sempre fazem um ponta nas Xica da Silva da vida. E até uma ex-popozuda que sempre aparecia pelada na novela Pantanal, mas cujo nome só a mãe dela de fato se recorda. Ah, e é claro, Gabriel Aveia Kwak.

Enfim, a minha parte da FLIP eu quero em pinga. Aliás, em agosto tem a Feira da Cachaça de Parati.

Faz sentido. Só bebendo pra esquecer.

terça-feira, 5 de julho de 2005

BODE VADIO

A Mulher do Próxim, de Gay Talese, está em minha cabeceira há alguns dias. Um livro que fala sobre a América e sobre o sexo. 

Para você que não o leu, isso pode significar absolutamente nada. Mas agora que atravesso a metade do livro, me sinto mais libidinoso que o Itamar Franco na Sapucaí em 93. Praticamente um Jece Valadão. Todas as taras que aprendi lendo Nelson Rodrigues e revistinhas de sacanagem na adolescência agora reverberam dias inteiros na minha cabeça - e não só na minha cabeça. 

- Só conheceu a derradeira felicidade o homem que possuiu a cunhada proibida. 

- Toda tara por amor não é tara. 

- Essa menina assanhada bem vale um crime sexual. 

- Me ama, mas me bate, porque eu não te mereço. 

- Perdoa-me, meu bem, por me traíres. 

- Quem foi que desenhou esses malditos caralhinhos voadores na parede do banheiro? 


A você, mulher comprometida, recomendo distância.