sexta-feira, 30 de novembro de 2007

ODE À MEGALOMANIA

Quem não é jornalista talvez não esteja muito familiarizado com o tipo identificado como jornalistinha. Segundo a Enciclopédia Vives-Larrouse de Adjetivos Pejorativos, jornalistinha é aquele sujeito que entra na faculdade crente que vai derrubar um presidente, viajar para o Tibete para escrever uma grande reportagem literária e ter uma coluna na Ilustrada sobre bandas escocesas de garagem que ninguém conhece cujo baterista morreu de overdose em 1969. Normalmente ele não consegue nada disso e cria um blogue.

Ao jornalistinha, a megalomania cai tão bem quanto uma saia curta na Catherine Zeta Jones. É bom frisar que jornalistas não são os únicos megalomaníacos, porém. Provavelmente toda profissão que envolva remuneração alta ou alguma proximidade com o poder - o jornalismo só se encaixa neste último, e eventualmente - possuem grande número de pessoas que masturbam o pequeno argentino que existe dentro de nós.

Abre parênteses. Não tenho problemas em dizer que também sou um megalomaníaco enrustido, ou então jamais sonharia regularmente que estou salvando a humanidade, o país e um grupo de pessoas ou tentando evitar que os americanos joguem a bomba atômica no quintal da casa dos meus pais só porque minha tia-avó que já morreu não quer sair do telefone. Fecha parênteses.

Na verdade estes parágrafos introdutórios foram uma tergiversação para dizer que vi um filme de suspense/terror que é um afago no ego de todo jornalistinha primeiro-anista da ECA. Não revelo o nome porque contarei o final. Quem já viu, vai saber qual é. Quem não viu não sairá deste blogue no prejuízo.

No filme em questão, o filho do Diabo vem à Terra para fazer mal às pessoas, bater em criancinhas, estuprar velhinhas, dar nó no cadarço do papa enquanto este faz discurso na Praça São Paulo e outras coisas similares. Acho que dizer que o cara é um Maluf zoófilo dá a exata dimensão da coisa.

Eis porém que de repente surge o estupor da megalomania: uma jornalista da BBC que prometia ser figurante no enredo transa com o filho do duba-dubá e, no frigir dos ovos, dá uma apunhalada nas costas dele que faz a humanidade toda cantar "We are the champions" no fim do filme (mentira, elas só cantariam isso se o diretor fosse eu). A jornalista é quem salva a humanidade do mal.

Rezo para uma continuação disso. A sanha imperialista do diabo se desfaz, mas como fica a história da jornalista que passou uma noite de furor libidinoso com o diabo e depois o botou pra correr? Deixo aqui um esboço de meu roteiro: ela ficaria famosa, escreveria um best-seller de memórias intitulado "Eu e o Diabo: Relatos de uma Vencedora", ganharia um Prêmio Comunique-se pela reportagem na BBC, uma coluna num jornal - talvez pra falar sobre bandas escocesas de garagem que ninguém conhece cujo baterista morreu de overdose em 1969 - e seria amiga da Mônica Bergamo.

Anos depois, o declínio da salvadora. Uma ponta numa novela da Record aqui, uma entrevista no Ronnie Von ali, uma matéria secundária na Caras dizendo que ela está amicíssima da Bárbara Paz e, por fim, aos 50 anos, a volta por cima: uma inusitada atuação como protagonista num filme da Brasileirinhas intitulado Possuídas pela Diabo, com a especial participação de Haroldo Predador no papel do encanador Lúcifer, o cano mais endiabrado da cidade. Chupa, Sylvia Saint. Chupa, Miriam Leitão.

domingo, 18 de novembro de 2007

DA PRIMEIRA VEZ EM QUE FIQUEI BÊBADO

Eu ia dizer que lembro como se fosse ontem mas, como se não bastasse o clichê, é mentira. Fiz um esforço hercúleo para tirar da memória a primeira vez que fiquei bêbado. Localizada a sinapse, os fatos vieram à tona feito nhoque cozinhando na panela – a metáfora gastronômica surge porque é uma e meia da manhã e eu estou com fome.

Havia uma danceteria – não existia a expressão “balada” naquela época - em Jundiaí chamada “Dreams”. Reza a lenda que em muitas outras cidades o nome “Dreams” se refere a puteiros, o que faz mais sentido. Porém, na minha terra, “Dreams” era onde, por 15 reais, Whigfield, Alexia, La Bouche, Double You, Scatman John e outros ícones da batistaca invadiam os ouvidos ao mesmo tempo em que a fumacinha de eucalipto surgia na pista de dança. Se você queria ser um cara legal em Jundiaí em 1997 – Deus meu, que triste dizer isso - você tinha que ir à “Dreams”.

Naquele tempo, um dos meus poucos amigos era o Maguila. Não o original, e sim um sósia dele na minha sala do colegial. Maguila era o sujeito calado por excelência. No primeiro dia de aula, fiz duas perguntas quaisquer para ele, e tive como resposta: “Não sei”. Ficamos amigos. Era o único sujeito que falava menos do que eu – sintaticamente, todas as suas frases eram formadas por períodos simples, jamais compostos - e, de quebra, ria de absolutamente qualquer coisa que eu falava.

Eu e o Maguila combinamos uma semana inteira de ir à Dreams na sexta-feira. Eu passaria a pé na casa dele e juntos andaríamos um quilômetro até a danceteria, que batia muro com uma Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. A fila ficava na frente da igreja, o que me permitiu decorar o nome dela – e tive tanto sucesso nesta empreitada que hoje, dez anos depois, o escrevi inteiro neste parágrafo sem dar uma olhadela no Google.

O interior da Dreams era roxo, as luzes também era roxas e o fumacê de eucalipto da pista de dança me deixava um tanto confuso. Eu tinha o maior medo de pisar nas pessoas, o que de fato ocorria a torto e a direito. O que eu era xingado por meninas só porque pisava no salto agulha delas nas baladas não estava escrito.

Lembro que eu e o Maguila entramos, pisamos em alguns pés femininos, ouvimos alguns xingos e ficamos com cara de merda. Eu tinha vergonha de dançar porque era maior que todo mundo no recinto e as pessoas ficavam me olhando com as sobrancelhas arriadas, sem contar no espaço que eu gastava pra me mexer pros lados. Aí o Maguila teve a grande idéia: “Vamos beber”.

Saímos da pista de dança para entrar na fila dos drinques que eram feitos por um barman que era a cara do Eduardo Suplicy. Eu achei o máximo o Suplicy ali girando a coqueteleira como se fosse fácil. Por sugestão do Maguila, pedimos uma Pina Colada que, naquela idade, era uma coisa deliciosa, doce como todas as bebidas deveriam ser aos 16 anos. Depois pedimos ao Seu Suplicy um Curaçao Blue. Este sim era uma merda. Tinha gosto de bagaço de laranja.

Voltei para a pista de dança um pouco mais solto, me mexendo mais, para azar do resto das pessoas. Comecei a observar a liturgia do xaveco furado. Perguntei ao Maguila se ele não ia arriscar a fazer o mesmo com alguém, no que ele me respondeu que tinha vergonha e – frase clássica – tava “di boa”. Resolvemos sair de lá em definitivo para beber.

Como a fila de bebidas era enorme e bagunçada, o Maguila me ensinou um truque que ele havia visto em outra balada: “Era só chegar no balcão no meio das duzentas pessoas reclamando da demora, gritar “Cadê a minha cerveja, porra?” que o coitado do atendente deixava uma correndo na minha mão. Fiz isso com cervejas e caipirinhas, mas não lembro quantas.

Lembro do Maguila arriscando algumas orações com período composto a dizer que pretendia arrumar um emprego, o que não conseguiu até o fim do colegial – anos depois fui saber que ele trabalhava num lava-car, tinha um pit bull e duas tatuagens de rothweiller nos braços. Passamos o tempo pendurados no balcão falando mal das professoras, ranqueando as meninas gostosas da escola e outras coisas sobre a vida de dois adolescentes que não tinham muita intimidade com os holofotes.

Deixamos a Dreams às três da manhã e voltei pra casa bêbado fazendo a Dança da Manivela nas ruas. O Maguila, coitado, não parava de pedir pra eu parar porque poderia acordar a vizinhança.

Ao contrário do que possa parecer, eu me diverti muito naquela noite.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O HOMEM QUE MATOU O ÓDIO COM A HERANÇA



Com insistente freqüência sou apontado como um sujeito ultrapassado. Ganhei a pecha por conta de algumas preferências, mas não endosso. Eu diria que sou um sujeito atemporal, que gosta de coisas sem se importar quando foram feitas (impressão minha ou esta frase soou arrogante? Não importa). O momento em que a obra foi realizada é sempre um dado que ajuda a interpretar um filme ou uma canção, não importa se é de ontem ou do tempo em que o Mar Morto ainda vivia. O tempo nunca pode ser parâmetro pra definir o que é bom ou ruim, a não ser quando algo é tão bom que sobrevive a ele.

Só existe uma coisa que, de fato, prefiro os de antigamente: carros. Eu gosto de carro antigo. Sou capaz de fazer um escândalo siciliano ao ver uma Romi-Isetta na rua e, no entanto, faço beicinho para uma Ferrari F50. Se alguém quiser me ver num momento infantil, debilóide mesmo, me leve a uma exposição de carros antigos.

Mas não é disso que eu queria falar.

Fiz o intróito para falar de dois filmes velhos, com cheiro de mofo, que provavelmente vai atacar as urticárias desse povo muderno de quem vivo levando espinafradas. O gênero é western ou, como diria meu falecido avô, filme de farweste, com muita morte, muito índio, muita puta mexicana e muito whisky vagabundo no gargalo.

Ontem revi o clássico Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch), de 1969, época em que o gênero bangue bangue dava seus últimos suspiros. Eu queria observar o papel de William Holden (mais famoso por A Profecia 2), o personagem principal. Holden é o líder de uma gangue na fronteira dos States com o México. Ele é caçado por uma outra gangue liderada por um ex-amigo (Robert Ryan). Os dois são fodões, se respeitam e têm aquela ética que só os fodões que se respeitam têm.

Mais que isso: Holden é o típico herói de filme americano de antigamente: resolve os problemas dos outros, nunca os seus. Tem um código de ética severo, não se perdoa pelos erros e com demasiada freqüência é figurante na vida dos outros e nunca personagem principal da sua própria. É um personagem denso, mas cansativo demais para os que estão em seu entorno - até para ele mesmo, que sempre demonstra querer mudar tudo, mesmo sabendo que não consegue ser de outro jeito.

Mais forte que Meu Ódio Será Sua Herança é O Homem que Matou o Facínora (The man who shot Liberty Valance), de 1962, época em que o western ainda vivia grande forma. James Stewart é o advogado sensível e moderno da cidade grande que chega a Shinbone, um vilarejo mundo-cão, disposto a fazer justiça. John Wayne é um cara durão, vaqueiro local, que segue as regras do jogo e é respeito assim.

John Wayne não é o personagem principal ao mesmo tempo em que o é. Mais que isso: é o típico herói do cinema americano de antigamente: não tem passado, veio de lugar nenhum, carrega suas chagas consigo, chega para resolver o problema e vai embora da mesma forma com que entrou no enredo. As atitudes de Tom Doniphon, o personagem de John Wayne, são todas baseados no que é o correto, não no que ele gostaria. Terminada sua missão, ele volta, sozinho e com dor, para o lugar de onde veio, que ninguém nunca sabe onde é - nem ele.

Eu poderia recomendar os dois filmes, mas, na qualidade de ultrapassado, não o farei. Provavelmente vou cansar o fino leitor com tamanha quinquilharia em forma de película. Prefiro dizer que o Código da Vinci está aí nas locadoras para ser alugado. Asseguro que é bastante atual. E me deixem com meus farwestes em paz.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O CANTO DOS CISNES DA ADOLESCÊNCIA

Eu tinha 15 anos e era noite de Natal - e esse começo mais parece o início do conto da rena do nariz vermelho. Juro que não tem nada a ver. Prossigo: como de costume à época, meu pai pegava o fusquinha verde e se dirigia para as casas de alguns amigos para desejar boas festas. Eu sempre ia atrás. Era sempre um motivo pra ele ver a rapaziada, contabilizar os que morreram naquele ano, falar de futebol e de política, beber e comer os quitutes que as mulheres dos amigos dele preparavam: a torta de palmito da Dona Marli, o rocambole da Dona Nice, a queijadinha da dona Não-lembro-mais-o-nome. A gente voltava umas dez da noite e era bom porque passávamos menos horas agüentando a infinidade de tias-avós lá em casa, a maioria das quais sempre reclamando do preço dos remédios e a dizer que aquele seria o última natal da vida delas.

Neste natal específico, lembro de chegar com meu pai à casa de um amigo e ser recebido pela filha dele, médica que era uns dez ou quinze anos mais velha do que eu. Ela ofereceu cerveja ao meu pai e perguntou se eu queria uma. Meu pai logo interveio: "Ele não bebe ainda". Lembro que ela arregalou os olhos e disse: "Seu Roberto, você acha que esse moleque não bebe? Olha essa cara de beberrão. Pega essa cerveja, menino. Se não bebe ainda, vai começar agora. Já passou da hora de um homem desse tamanho começar a beber".

Lembro de pegar a cerveja na mão e contemplar o infinito, vitorioso. As pessoas vinham encher o meu copo igualzinho como faziam com os adultos, e ainda perguntavam minha opinião sobre as coisas. Ali eu deixava de ser somente o filho do meu pai para ser também gente grande. Nunca mais parei de beber.