
Quem trabalhou na Abril ou simplesmente foi criado lendo coisas por lá editadas acaba acostumando a ranquear tudo que aparece pela frente. Talvez este seja um costume pra lá de ridículo, mas é apenas mais na minha lista de costumes ridículos.
Tentei organizar uma lista das músicas do Chico Buarque que mais gosto - eis como aproveitei meu domingo, o que considero muito bem aproveitado, diga-se. Separei apenas as músicas que considero sensacionais, excluindo as que ganharam a classificação "muito boa" para baixo. Fiquei com 27 em mãos, o que é só mais uma prova da genialidade do moço que ganhou o clichê "Ninguém entende as mulheres como Chico Buarque" como uma de suas boas definições.
Eis o resultado:
10) CONSTRUÇÃO (1971) - Fosse pra eleger as melhores músicas do Chico, essa provavelmente formaria uma trinca junto de Apesar de Você e Roda Viva. Mas como a lista é sobre as que eu mais gosto, entra em décimo lugar, porque é artisticamente impecável, mas não apaixonante como outras. Todas as frases da canção terminam com uma palavra proparoxítona de três sílabas. Essas palavras se alternam nas três partes da música, formando uma construção poética e musical de forte impacto. Como se não bastasse, é a história de um pedreiro que se achava importante demais em sua construção. Só que, ao cair da obra, ele morreu na contramação atrapalhando o sábado, grande lição sobre a relatividade da importância da própria vida. Coisa de gênio, sem dúvida. E fica ainda melhor agregada com Deus lhe Pague no final, relatando o desencarnar da alma do pobre coitado.
9) GENI E O ZEPELIN (1977-78)- Canção para a peça Ópera do Malandro. Conta a história de uma secretária da beira do cais (pegou o eufemismo?) que dá para rigorosamente todo mundo. Mas eis que chega um zepelim disposto a destruir a cidade, que é um horror (sempre imagino Cubatão como cenário). O comandante, um sujeito boa pinta, desce e diz que só não vai explodir o local se aquela formosa dama lher servir. Essa dama é a Geni. Só que ela, que dá pra todo mundo, não se empolga com o sujeito, o que em muito explica o clichê do Chico realmente entender as mulheres como ninguém (isso é uma provocação, não joguem tomates na tela do PC). A cidade, que sempre joga pedra na Geni, vai aos prantos pedir pra ela passar uma noite com o sujeito. Ela cede aos apelos, mas no dia seguinte todo mundo volta a ralhar com ela. Uma crônica fantástica sobre a porção filhodaputa que mora nalgum canto dentro de todos nós.
8) JOÃO E MARIA (com Sivuca, 1977) - Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês, cantava Chico e Nara Leão. A melodia medieval composta pelo Sivuca mede a exata sensibilidade de letra de Chico. Um casamento perfeito, como o daquelas duas crianças do enredo da história que brincavam de rei e rainha, contada pelo narrador relembrando os tempos de nostalgia perdida - o tempo passou e ambos nunca mais se viram. Mulheres costumam se desmanchar com essa música. Chupa, Lionel Ritchie.
7) ATÉ O FIM (1978) - Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim. Uma versão musicada do gauche da vida do Drummond, muito mais bem humorada. Vai ao fundo com o jargão "quando chove merda não garoa", já que nada dá certo para o protagonista. Mesmo assim, o jeito é continuar. E ele vai até o fim. Inesquecível.
6) CAÇADA (1972) - Pouco conhecida, o que é uma pena. Foi composta para o filme Quando o Carnaval Chegar, do Cacá Diegues. Tem certa sonoridade de música medieval, como João e Maria, e conta a história de um caçador a espreitar sua caça, ao mesmo tempo que é extremamente erótica: a caça pode ser uma mulher. O jogo duplo é de arrepiar: De tocaia fico a espreitar a fera / Logo dou-lhe o bote certeiro / Já conheço seu dorso de gazela / Cavalo brabo montado em pêlo. O mundo do erotismo precisa conhecer essa música.
5) O QUE SERÁ (1976) - Para o filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto. A música é noventa vezes melhor que o filme, e pouco tem a ver com ele. É a música certa para crises existenciais, quando você fica triste por tudo de bom que poderia ter ocorrido nessa merda de país, e que você sabe que não vai mais ocorrer. E mesmo o padre eterno que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar. Cantada com o Milton Nascimento, o que faz dela ainda melhor.
4) MINHA HISTÓRIA (GESUBAMBINO) (Dalla - Palotino - versão de Chico Buarque em 1970) - Canção italiana com versão em português de Chico. Nunca ouvi a original, mas duvido que seja melhor que a em português. Um marinheiro deixou a minha mãe parada, pregada na pedra do porto, com seu único e velho vestido cada dia mais curto. O único sinal do marinheiro é a criança que ela dá a luz, o narrador da história. A mãe, frustrada com a ausência do homem que a amou por uma noite apenas, cria o filho no ambiente do cais e dá a ele o nome de Menino Jesus. Some o órgão ao fundo e vocais do MPB4, e você tem uma dos mais magníficos exemplos de sensibilidade humana.
3) MULHERES DE ATENAS (com Augusto Boal, 1976) - Composta para a peça de mesmo nome, de Augusto Boal, histórico dramaturgo da esquerda brasileira, co-autor da música. Não estaria em nenhuma outra lista que não a minha. Tenho laços afetivos com ela. A melodia faça por si mesma, preenche todos os espaços de quem abre os ouvidos pra ela. Ao relatar a história das mulheres dos guerreiros da Atenas antiga, a letra é ora feminista, ora feminina apenas. Demoro uns bons vinte minutos pra me recompor ao ouvir esta música.
2) APESAR DE VOCÊ (1970) - A mais singela homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici. Samba clássico, aliado ao duplo sentido antológico da letra, que fala de um sujeito que tenta desencanar de um fora e que pode ser entendida como um "tua hora vai chegar" para a Ditadura Militar. Composta em 1970, passou pela censura e o single começou a vender horrores. Até que um militar menos burro entendeu que a coisa era com o Médici, e não só com um sujeito com dor de corno. Junção impecável de melodia, letra e relevância. Provavelmente a mais importante música de Chico Buarque de Hollanda.
1) RODA VIVA (1967) - Composta para a peça de mesmo nome escrita pelo próprio Chico. Também casa com perfeição a música, e a letra com a relevância história. Um samba cíclico: por mais que as boas coisas simples da vida - o samba, a viola, a mulata, a roseira - tentassem se impor, eis que chega a Roda Viva, e carrega o destino pra lá. A Roda Viva, é claro, era a Ditadura Militar. Foi ao som dessa música que os mackenzistas idiotas do CCC - Comando de Caça aos Comunistas - se juntaram à polícia e invadiram o teatro Galpão, onde era encenada a peça, e bateram nos atores e destruíram o cenário. Roda Viva conta com a sempre bem-vinda participação especial do MPB4 nos vocais de fundo. Minha preferida desde pequeno, trilha sonora pras inúmeras rodas vivas que desde então a gente tenta jogar pra lá.