terça-feira, 26 de abril de 2005

I SAW YOU SAYING THAT YOU SAY THAT YOU SAW (I SAW YOU SAYING...)

Houve um tempo em que a barba despreocupada que hoje toma de assalto meu rosto não existia. Lá se vão muitos anos do dia em que liguei a TV e descobri que pessoas liam Shakespeare no original e, mais do que isso, saíam por aí a recitar versos do dito cujo. Alguns reuniam os amigos para isso, outros andavam pelas ruas de madrugada a judiar das cordas vocálicas em um sincero To be or not to be. Qualé a questão mesmo? 

Gostei da idéia. Por que eu não podia ser um artista também, desses bacanas que aparecem na televisão recitando gente famosa? Foi então que profanei um livro qualquer de Shakespeare na estante e, para provar a mim mesmo de que as aulas de inglês me eram importantes, saí pelas ruas madrugada adentro a fazer meu modesto e não menos sincero To be or not to be. 

Pois bem. Vinha eu fazendo progresso pelas vielas do bairro quando fui surpreendido pelo fantasma do tal de Shakespeare, que me pegou pelos colarinhos, olhou nos meus olhos mui falcionicamente e vociferou: 

- Idiota: fica na sua. 

Mas ele não disse isso sem antes deixar em mim pedaços da baba elástica de seu narcisismo, para roubar uma expressão rodrigueana. Sem rumo e sem auto-estima, anos depois prestei jornalismo. 

Hoje sou jornalista e decoro quadrinhos de Calvin e Haroldo. Dizem que tenho muito orgulho disso. 


Moral da fábula: procure recitar poemas somente em horário comercial. 

sexta-feira, 22 de abril de 2005

VIVES RHAPSODY

Invado o apartamento descabelado, feito um cachorro sem dono em assalto a lixeira da padaria. Meu estômago está em qualquer lugar nas costas. Vislumbro de longe o um quarto do pacote de bolacha e sorrio com satisfação. O jantar está garantido. As quatro trakinas murchas e derradeiras de minha despensa descem pela goela uma a uma feito as crianças do clipe de Another Brick on the Wall, que se atiram no moedor de carne, catatônicas.

- Regozije o ruim de hoje para valorizar o péssimo de amanhã.

São durante estes momentos de nababesca fome que penso na vida. Um papa com cara de apresentador do Jornal Nacional dos anos 60. Seria o julgamento de Michael Jackson como os televisores Mitsubishi, que são válidos até a Copa de 2010? Os nossos japas são os tais, e com essa garantia é demais. Por que cargas d´água eu não fiz supermercado de manhã? O que esse sapato deselegante tem contra meu mindinho?

- Words, words, words, doubts, doubts, doubts!

O ócio não-criativo é deselegante e causa conseqüências desagradáveis, como, por exemplo, cantar Johnny Matthis debaixo do chuveiro às duas da manhã. Tonight, tonight, won´t be just any night... Calo, roxo de vergonha, por ser a única testemunha desta ária deselegante. Mais um pouco enfiaria a cabeça no ralo feito um avestruz, em protesto contra o assassinato dessa que é uma das mais belas trilhas sonoras do cinema. Mas de que filme mesmo, cáspita? And for us, the stars will shine, where they are...

Pois é então que escrevo estas palavras com os dedos da galhofa e as teclas da melancolia, e mal sei o que esperar deste conúbio. Vou para Jundiaí, terra da uva, da fofoca e das noitadas perdidas. Casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomar, amor, cantar. A mulher que sentou ao meu lado no busão usava óculos tão grandes que pensei estar ao lado do Paulo Francis de peruca. E aquela outra que mora no segundo andar, que é a cara do guitarrista do Queen! Lembro da chapadona da festa que perguntou se eu sou um viking. Não um sueco, não um norueguês: um viking. Cogitei a hipótese de ser um fetiche, me imaginando a invadir o quarto dela com roupas medievais e um chapéu com chifres, a gritar:

- Oi, benzinho, vamos invadir a Cornuália esta noite?

Mas pensando melhor no assunto, não era fetiche nem nada da pobre moça. Era apenas uma dose etílica excessiva na corrente sangüínea. Não havia a menor conotação sexual. Felipe Corizza, por exemplo, já fez coisa pior quando estava bêbado, aí sim como tentativa de descabelar o palhaço do garçom do Asterix. Pegou-lhe pelo cós das calças, a sussurrar:

- Meu bem, eu te cobiço.

Eu respeito essa sua opção sexual (embora não compactue com ela), mas tenha um pouco mais de sutileza, meu caro. Nunca bote a mão no joelho e dê uma abaixadinha logo de cara. Pague o champã primeiro, e não se esqueça de tirar o lenço do paletó antes de estourá-lo. Na próxima tente cantar para ele uma música do Johnny Mathis. Tonight, tonight, won´t be just any night... Mas de que raio de filme é essa música, Cristo Santo? Nunca mais eu vou lembrar.

- Today, the minuts seem like hours, the hours go so slowly, until the sky is bright...

Manuel Bandeira falou certa vez que Chão de Estrelas, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, tinha a frase mais bonita de toda a música e literatura brasileiras: Pisavas os astros tão distraída. Seu Manuel, a letra da música também tem trechos como Minha vida era um palco iluminado, eu vivia vestido de dourado, palhaço das perdidas ilusões e A claridade forra meu barracão, sinto saudade, da mulher pomba-rola que voou. Aí não dá. Legião Urbana não faria melhor.

- Quem inventou o amoôoôoôoôrrrrrrrrr, me diga por favoôoôoôoôorrrrrrrrr...

Onde eu queria chegar com isso? Ah sim, considerem o blog atualizado. Agora, como diria a poeta: "Beijinho, beijinho, tchau, tchau". Vou dormir. Oh moon, go bright, and make this endless day an endless night, tonight.

Cara no travesseiro e boa noite.

segunda-feira, 4 de abril de 2005

A BALALAIKA CEREBRAL

Tenho tido sonhos exóticos. Minha situação neuronial é periclitante e exigirá destreza de minha parte para não ficar maluco. Temo que minhas células cerebrais adquiram vida própria, tal qual meu pega-rapaz. Trata-se de um balé neuronial, uma balalaika de células que, ao acordar, me fazem pensar que estou pinelzinho da silva. 

Primeiro, sonhei que a srta. Karen C. andava de amassos com Fabio Costa, o goleiro do Corinthians. Quando perguntada a respeito, ela, em um trilho de trem no meio do nada, com um cigarro na mão, respondeu: 

- Ah, sei lá. Ele é bonitão. É um machão de verdade - e tragou. 

Dias depois, sonhei que eu era o Príncipe William. Em verdade eu era eu o Vives de sempre, mas estava na Inglaterra, usava as roupas do Príncipe William e todo mundo me parava na rua pra dizer "Hi, Prince!". Lembro que me vi com um terno superfino entrando a pé em um haras para jogar pólo. Isso mesmo, eu me vi entrando na porteira do haras, como se fosse uma câmera parada a me observar indo embora. 

Perderia a conta de quantos sonhos bizarros já tive, e bem sei que não sou o único. Mas nada supera aquele em que a Guerra Fria estourou em Jundiaí, mais precisamente no quintal de casa. 

Vou contar. 

Eu era um soldado da linha de frente do exército soviético. Usava aquele uniforme elegante e tudo mais. Só havia mato em nossa frente e ninguém tinha mais noção de onde estávamos. É quando nos deparamos com um muro grande e branco. Coloquei umas dinamites, abaixei a cabeça e tampei os ouvidos. Após a explosão, o buraco revelou que aquelas eram as ruínas da casa do meu vizinho e que o muro era o que separa nossa garagem da piscina dele. Os carros do Papai Vives estavam lá e, na frente deles, uma linha de soldados americanos. Foi um desespero. Ficamos apontando as armas uns para os outros, nós gritando em russo, eles em inglês. Foi então que um avião americano começa a sobrevoar a área. O alto-falante dele anunciou: 

- Alguém nos comunique com Moscou agora, ou jogaremos uma bomba atômica neste local. 

- ´xá comigo, eu sou o dono da casa - gritei eu, enquanto ganhava a escada em direção a sala, local do telefone. 

Mas minhas duas tias-avós, Cida e Gina, estavam em casa naquele momento, o que até hoje, com a distância temporal dos fatos, considero extrema deselegância do destino. Quando vou alcançar o telefone, ele toca. Tia Gina pega o telefone antes de mim: 

- Alô? Oiiiiiiiiiiiii, tudo bem? Quanto tempo, que bom que você ligou! 

E começou a bater o maior papão com algum dito cujo que, pelo andar da carruagem, queria ver o mundo destruído. O avião dava rasantes na casa e eu, desesperado, a gritar "Tia, por favor, me deixa falar com Moscou senão eles vão acabar com a casa!", mas nada adiantava. Ela fazia sinal para eu esperar a minha vez de usar o aparelho. É quando ouço uma sirene de alarme, e o avião em novo rasante. Na sacada vi a bomba cair no quintal e formar um cogumelo enorme de poeira. Eu VI a nuvem se formando e quebrando todos os vidros da casa. O quintal virou um buracão. 

Em dois minutos, a outra tia-avó caiu morta. Eu não sabia o que fazer, quando meus pais chegam do supermercado. Eles descarregam o carro na maior tranqüilidade e entram como se bomba alguma tivesse sido jogada no quintal de casa. 

- Pai, a Tia Cida caiu morta depois que jogaram a bomba. 

- Ah, então vamos colocá-la dentro do sofá. Eu não queria isso, mas trata-se de um esforço de guerra. Quando tudo acabar, a gente enterra a tia em um local decente. 

Então eu e ele tiramos os assentos do sofá e jogamos o corpo de nossa tia - tia dele, em verdade - dentro, e depois colocamos novamente os assentos. 

- As visitas não vão nem notar - disse meu pai, examinando o sofá para ver se reparava algo estranho. A outra tia continuava ao telefone, por increça que parível. 

De repente, minha irmã que não dirige e odeia qualquer carro com mais de 5 anos surge dirigindo uma Veraneio vermelha (???). Ela me dá carona até o centro da cidade, que, no sonho, não ficava no centro, e sim na zona sul - o mesmo que, em São Paulo, um belo dia encontrar a Sé depois da Avenida Santo Amaro. Lá, a irradiação tomava conta e podia ser notada por uma fuligem cinzenta que pairava no ar e sujava as pessoas. Encontro meu irmão tomado de sacolas nas mãos: 

- Cara, mó liquidação por causa da bomba! Vou pra casa e volto daqui a pouco pra compra mais. 

Então eu, vestido de militar soviético, com aquele chapéu russo típico de pele de urso e um sobretudo longo, passei a fazer compras. Só bugigangas, coisas da 25 de março. 

Acordei nesse ponto, para minha tristeza. Faz uns seis anos e eu estaria sonhando com isso até agora se me deixassem. E desse sonho, só uma certeza me resta: minha tia-avó continua ao telefone.