domingo, 27 de janeiro de 2008

COSTELA, BUKOWSKI AOS 19

Ainda acho que o cérebro da gente tem umas gavetas ocultas que, de vez em quando, no momento em que os neurônios arregaçam as mangas para uma faxina de sinapses, deixam cair algumas lembranças que acabam estourando como gêiseres.

Hoje passei na frente de uma marcenaria da Avenida São João enquanto cantarolava Born to Be Wild, o que fez piscar, tal qual uma janela de Windows, a pasta sobre um dos personagens mais peculiares que conheci na adolescência: o Costela.

Freqüentava eu uma galeria na minha terra onde havia um fliperama. A gente jogava meia hora (eu gostava do Cruisin World) e depois ia pras cadeiras tomar uma cerveja – uma quer dizer uma só mesmo, e a mais barata - ninguém tinha grana para esbanjar, e ainda éramos obrigados a guardar o dinheiro do busão pra voltar pra casa.

Numa dessas vezes em que bebíamos e falávamos sobre rock sem parar, dois moleques na mesa ao lado esticaram os ouvidos e passaram a palpitar na nossa conversa. Um era baixinho e simpático, com cabelos pra cima a la KLB, desse tipo que o mulherio mandava bilhetinhos nas festas da escola. O outro, um e noventa de altura, narigudo, magro que doía, feio feito o cão e que falava sem parar. Usava impreterivelmente um boné enterrado na cabeça, cabelos até os ombros e enormes costeletas suíças no padrão Joe Cocker em 1969 – creio eu, para esconder os buracos de espinha. Esses ramos de barba que lhe escondiam as orelhas me fizeram chamá-lo de Costela, apelido que pegou na hora e ficou para o todo e sempre, já que ninguém decorou o seu nome (algo como Valdinei, Edinei, por aí).

O baixinho KLB era primo do Costela, que tinha uns dois anos mais que a maioria de nós (ou seja, uns 19, 20) e que há muito abandonara o colegial. O Costela trabalhava na marcenaria do próprio pai num bairro de periferia que nem o diabo ousava passar. O baixinho KLB, que o auxiliava no trabalho, além de primo era, não por acaso, também seu melhor amigo.

Sabia tudo de rock o Costela. Todas as bandas americanas dos anos 60 e 70 que faziam sucesso entre motoqueiros ele conhecia. Das que ele gostava eu só sabia da existência do Steppenwolff, que cantava a Born to be Wild, a música da minha turma e de tantas outras turmas cheias de moleques que gostavam de rock.

O Costela era gente finísssima, uma grande figura, mas bem tragicômico. Ele se assumia como o feio a ser repelido e sempre ajudava o primo bonitinho a pegar mulher. Lembro de uma vez em que perguntei se ele tava a fim de alguém, no que o Costela respondeu, com o erre e o dê carregados pelo típico sotaque jundiaiense:

- Porra, véio, eu sou feio pra caralho, burro e trabalho cortando madeira na marcenaria do meu pai. Mulher pra mim só se for puta. Já fui uma vez no puteiro, mas não comi ninguém porque tava duro. Mas as putas eram legais, troquei mó idéia com elas. Prefiro mesmo é ajudar o meu primo a se dar bem. Ele me vinga com as mulé.

O Costela tinha taras estranhas. Lembro que na frente das mesas que sentávamos na galeria tinha uma loja cuja dona era uma quarentona gordinha. Não era um mulherão lascivo, daquelas que todo adolescente sonha que lhe arranquem a virgindade a dentadas, mas sim uma tiazona clássica, dessas que levam os três filhos pra escola dirigindo a Caravan do marido. Mas o Costela era obcecado por essa quarentona. Era só ela passar que o meu amigo urrava de prazer, dizendo:

- Ah, essa gordurinha (leia-se culotes)... tudo que eu queria era morder essa gordurinha...

Certa vez a administração da galeria montou uma área para crianças brincarem, na tentativa de atrair donas de casa para fazer compras. Nesta área infantil, também na frente das nossas mesas, havia uma moça vestida de palhaço que foi contratada para brincar com a gurizada. Só sabíamos que era uma moça porque, de perfil, ela tinha duas delicadas pretuberâncias que formavam um busto médio. Mais que isso a maquiagem e a roupa não deixava ver. Mas não dava outra: era só ela passar que o Costela dava voz aos seus hormônios, secando-a com louvor:

- Ah, essa palhacinha.... se me desse bola a gente fazia ali mesmo, na piscina de bolinhas...

O Costela tinha a auto-estima típica de um adolescente fudido. Fudido porque era pobre, porque não conseguia estudar porque tinha que ajudar o pai no trabalho, além de todas aquelas frustrações com mulheres que os homens na idade que ele tinha costumam ter. Se eu tivesse mais sensibilidade à época eu diria pra ele que, ali, ele era só mais um que carregava um mar de incertezas, e que iria usar toda aquela amargura pra ser um sujeito melhor. Esse tempo, embora muitas vezes demore, sempre chega. Mas eu, como todos ali, era tal qual o Costela, apenas menos exposto ao auto-folclore.

A última vez que o vi não foi nesta década. Só soube depois que ele começou a beber bastante, a freqüentar puteiros pra valer e que assumiu a serralheria do pai. E sumiu por completo. O Costela foi o sujeito mais Bukowski que conheci em Jundiaí, e olha tinha apenas 19 anos. É um tipo que me faz gostar um pouco mais desse bicho difícil chamado ser humano, e a quem torço muito que tenha encontrado uma harleira doidona, dotada de culotes expansivos, que faça dele o homem que o adolescente Costela nunca acreditou que pudesse ser.

sábado, 19 de janeiro de 2008

TV, A IMAGEM DA BESTA

Nerivan Silva, um dos meus ídolos, e algumas cocotinhas

Reza a lenda que jornalismo é como salsicha: se soubessem como é feito, ninguém comprava mais jornal, e estão aí o açougue da Avenida São João e o Agora São Paulo pra não me deixar mentir. Por exemplo: toda vez que vejo o Late Show, com a Luísa Mel e suas gengivas acinzentadas, temo que um dia um cão basset possa ser meu chefe no futuro (ErreideTV!: A TV que mais erra no Brasil).

Mas nem tudo é lágrima nessa vida. Ainda bem que existe a TV Gaveta e o Programa do Nerivan Silva, que não paga o webmaster do próprio site há dois meses, para salvar os meus fins de semana.

Alguém já disse que o homem evoluiu do macaco, mas que alguns ainda estão evoluindo. Mesmo assim, há controvérsias, há controvérsias.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

AMAZÔNIA (E O VIVES) EM CHAMAS

É inacreditável, mas sonhei que ganhara uma chácara no Acre e pra lá parti após deixar o emprego. Senta aí que a história é longa e bizarra. O objetivo era viver no mato por uns tempos e... escrever um livro.

Aparentemente algumas semanas se passaram até que fui notificado de que a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, desejava falar comigo pra saber que cargas d´água eu estava fazendo por lá. Disseram que o problema é que eu não tinha visto para ficar no Acre. Ao chegar na entrevista, disse a ela que adotara um cachorro pra não ficar tão sozinho no meio do mato. Ela me olhou com ódio e começou a gritar que o Acre não é lugar de cachorro, que eu estava levando um animal estranho à região e que isso poderia acarretar danos ecológicos gravíssimos ao planeta. Mais que isso: vindo do sudeste, eu provavelmente estava lá para plantar soja e contribuir para a derrocada do meio ambiente. O tom da tensão foi aumentando até ela ter um surto psicótico: assustado, eu acompanhava a ministra a se debater na minha frente enquanto gritava e arrancava os cabelos de ódio. Com as mãos cheias de tufos capilares e de sangue, Marina Silva me ordenou que saísse de lá imediatamente.

Chateado, voltei para minha simpaticíssima chácara e liguei um rádio Ford portátil vermelho igualzinho ao que minha tia-avó tinha na casa dela. Era a Ministra Marina Silva em cadeia nacional, com a voz bem calma e serena a dizer, quase como quem reza:

- Acabo de expulsar Fernando Vives do Acre, para o bem do povo do Norte.

Em pânico, desembestei do recinto e vi uns traficantes colombianos sentados num jipe numa rua próxima. Todos eles tinham a cara e o bigode do Chico Mendes. Nada os identificava como traficantes, mas eu sabia que eles eram. Eu pedi que me levassem até a fronteira com a Colômbia e fiquei feliz quando eles toparam a empreitada.

Lembro que eu suava com o calor. Muito. O jipe margeava o Rio Trombetas com as rodas dentro d´água. Sim, eu sei que o Trombetas passa bem longe do Acre, mas ele era o Trombetas, não tenho como mudar o roteiro do meu sonho. Para aumentar o caráter dadaísta, águas-vivas lotavam as margens do rio, encalhadas. E eu gritava aos traficantes:

- Atropelem essas filhasdaputa, atropelem rápido essas filhasdasputa agora porque elas estão aqui só pra queimar a gente.

Ao passar pela fronteira, um dos Chicos Mendes traficas pára o jipe e me comunica que, em retribuição ao favor, eu teria que prestar alguns serviços ao cartel de Cali, sob o risco de ser seqüestrado pelas Farc, e que o motivo do seqüestro da Ingrid Betancourt, há seis anos raptada, era não ter retribuído uma carona deles. Ao dizer isso, o tal Chico Mendes me sorri e mostra que tem uma caveira tatuada em cada um dos dentes.

O sonho obscurece neste ponto e tenho a impressão de que eu me mexia muito na cama, uma vez que só tenho imagens esparsas e lembro de um incomodo profundo. Mas ele volta quando eu tentei fugir correndo para baixo do jipe. Foi quando um dos Chicos Mendes, em inglês com sotaque de traficante latino-americano de Hollywood, diz algo parecido com isso:

- Que vergonha um cara desse tamanho tentando se esconder embaixo de um jipe. Se liga, cara: ou você bate ou você apanha. Nunca tem meio termo. Desde pequeno é assim. Você vai querer mudar isso agora? Seu trouxa.

Tentei levantar, mas eles disseram que iam me afogar no rio. Olhei em volta e haviam avestruzes (não me pergunte, por favor) e índios observando a cena. Eu gritei para um índio velho (a imagem dele era a mesma de um cacique que eu vi sendo entrevistado na TV Cultura outro dia) para me ajudar, e ele:

- Homem branco traz doença. Pro rio agora, moleque.

Como não tinha jeito, parti pra porrada contra os traficas. Mas cada porrada que eu dava, tomava duas. Eu olhava em volta e cada vez mais Chicos Mendes apareciam do nada para me espancar. E eu suava com o calor. Tive que pular para a água enquanto era perseguido pelos traficas, agora já uma dezena deles, todas com cara e bigode do seringueiro acreano.

Foi então que lembrei que o rio estava cheio de águas vivas vindo para as margens. Veio o pânico, mas veio mesmo: acordei com um grito que eu mesmo dei. Eu já estava em pé ao lado da cama. A camisa estava irrigada de suor. Na cama, um cobertor – não lembro que horas acordei pra pegar um cobertor. Era por isso que suava tanto no pesadelo.

Eram onze horas da manhã. Tirei a camisa, olhei pra ver se não tinha ninguém mesmo dentro do apartamento além de mim e, enquanto a pulsação diminuia, fui pra janela fumar um cigarro existencial - eu que não fumo só trago cigarros existenciais. Nunca fiquei tão feliz ao ver o Minhocão, lá longe, todo cinza de poluição.

Moral do sonho: salve a Amazônia você, porque eu to fora.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

ESTÁ NA HORA DESTA GENTE DESPIGMENTADA MOSTRAR O SEU VALOR

A geladeira está vazia. Há duas cervejas, uma vodka (essa mesma, Izuka), uma garrafa de leite Fazenda três quartos vazia e uma laranja dentro dela. Acabo de voltar da aula de boxe. Não, não têm glamour nenhum as aulas de boxe. Resolvi me esforçar, comprar luvas e tudo mais, mas as luvas estão quase intactas. Coordenação motora nunca foi meu forte, eventualmente consigo acertar o saco de pancadas. Toda noite eu tiro as luvas humilhado, me olhando de soslaio no espelho. Hoje, depois do recesso de ano novo, suei tanto que a camisa branca ficou transparente, o que ninguém notou, já que sou tão branco quanto a camisa. Já está na hora desta gente despigmentada mostrar o seu valor - chupa Moraes Moreira, chupa Pepeu Gomes.

Antes de ir pro boxe, bebi um quarto da garrafa de leite. Não havia - e não há - água para beber em casa. Esqueci de comprar. O leite substituiu a água, mas ele é traiçoeiro pra caramba: azeda no estômago. Nunca vá para a aula de boxe depois de beber leite, nem que seja só um quarto da garrafa. Eu devia ter bebido era a cerveja. Quase desmaiei umas três vezes durante a sessão. E o instrutor, ali, gritando, cruzando os braços como se fosse me boxear: "Isso aí Fernandô, tá melhorando, tá melhorando, solta esse jeb, Fernandô..."

Agora chego em casa e meu estômago resolve proclamar sua presença. Não há nada dentro de mim, diz ele. Filhodaputa. Retruco que também não há nada na geladeira. Com um esgar de sobrancelhas (sempre quis usar a palavra "esgar") ele ignora o que eu disse. Exige uma atitude. Abro a geladeira e o bom senso pede a laranja, que está ali incólume há alguns meses. Apalpo-lhe e não me apetece. Olho para as cervejas que sobraram da viagem à praia na porta e minhas papilas gustativas parecem cantar o Hino à Alegria. Ah, essas pinguças felasdaputa.

Resolvi jantar as cervejas e eis me aqui, na frente deste PC, contando esta história em tempo quase real, à procura de algo absolutamente genial pra dizer. Achei: em sua vida, todas as vezes que você for entrar em um elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no mesmo andar. É lei municipal. Chupa, Dracon, chupa, Sólon.

P.S.: Nenhuma lata de cerveja foi maltratada durante a produção deste post.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

NOVA IORQUE, MINAS GERAIS

Sonhei que havia comprado um pacote de viagens da CVC - eu nunca faria isso - pra Nova Iorque. Chegando lá, um espanto: não estava em Nova Iorque coisa nenhuma, e sim em Ouro Preto travestida de Nova Iorque. Explico: cada igreja estava coberta por um papelão gigante que simulava os arranha-céus novaiorquinos. A Igreja que fica ao lado do Museu da Inconfidência, por exemplo, era tomada por um simulacro da Torre Chrysler. E por aí vai.

Cheguei ao hotel, rodei pelo quarteirão e fiquei indignado. Eu corria atrás dos guias da CVC gritando que aquela viagem era uma fraude, e eles ora corriam de mim, ora fingiam que não me escutavam. Eu gritava que não era justo e exigia que me levassem até o aeroporto de volta (não tem aeroporto em Ouro Preto, mas fica como licença poética). É quando um mulato me pára e diz com o maior sotaque mineiro do mundo:

- Paulista, deixa disso, sô. Tu num tá vendo que aqui é a Big Apple não? Deixa de ser abestado, uai.

Retruquei perguntando do sotaque dele, e tive uma resposta em inatacável inglês: "Don´t know what you´re talking about, man. Excuse me" (tecla SAP para você que não sabe inglês: ele disse que o livro estava em cima da mesa).

No auge de meu furor intempestivo, eis que encontro minha amiga Danizinha. Ela coloca a mão no meu ombro e diz que tinha novidades:

- Fui convidada para ser técnica do São Paulo no lugar do Muricy Ramalho. Ele acabou de cair.

Ficamos pesando os prós e contras dela assumir o São Paulo. Por um lado, ia ganhar mais e trabalhar com esporte, algo inédito em sua vida jornalística, e desafios assim costumam valer a pena. Por outro, a pressão é grande, o clube disputa Libertadores e ela simplesmente não liga a mínima para futebol. Tomamos um café com pão de queijo e, na saída, vem outro amigo meu, o Vinicião Kate Moss, confirmando que apurou junto a diretores do São Paulo que a Danizinha era, sim, a mais cotada para assumir o Real Madrid da Vila Sônia. E acabou-se.

Este sonho provavelmente tem algo a ver com aquela propaganda de operadora de telefone (acho) em que o sujeito vai pra uma Nova Iorque no Maranhão. Também faria mais sentido se fosse Governador Valadares e não Ouro Preto a terra fraudulenta.

O sonho provavelmente não tem moral. Só acho que meus neurônios estão procurando deturpar a psicanálise com todo ímpeto impossível.