domingo, 8 de abril de 2007

OS MISERÁVEIS


Victor Hugo, o pai da criança, em pose de enxaqueca

Nada mais agressivo e arrogante do que um sujeito cético. Quando as coisas não dão certo, quando aqueles planos imaginados durante muito tempo vão pelo ralo, sempre aparece um que te assistia da arquibancada, com um sorriso amarelo, a levantar a plaqueta do "Eu já sabia". De um sujeito que é cético por natureza não se espera absolutamente nada além do ceticismo (e, por conseqüência, da frustração). Ele não constrói, apenas critica - com ou sem razão, tanto faz - quem tenta construir. E, quando não dá certo, ele vem soprar na tua orelha a arrogância absoluta do "Eu avisei".

Nunca li Nietzsche. Li sim, uma vez, um livro que explicava Nietzsche. Como não tenho a pretensão de me mostrar mais culto do que o real - isto aqui é apenas um blogue -, podem me corrigir se estiver errado: Nietzsche é de uma amargura inenarrável. Negava absolutamente tudo. O homem, para ele, era um mané em potencial. Nietzsche, Deus existe? "Morreu". Nietzsche, e o ser humano? "Um fracassado". Nietzsche, e a mulher do Wagner? "Uma vadia". Nietzsche, e o Curíntia? "Não tem estádio".

Imagino o menino Nietzsche ganhando um Ferrorama de Natal. Antes da mãe botar o peru na mesa, o rapazote já juntou os trilhos rumo ao abismo atrás do sofá. Quando a máquina se esfacela no chão, Friedrich acaricia o buço já volumoso e ri de própria miséria. É isso: uma máquina (foda-se a cacofonia) de Ferrorama aos pedaços atrás do sofá é um retrato de toda a teoria filosófica de Nietzsche (sou exagerado, nunca disse o contrário).

Digo isso porque acabo de reler Os Miseráveis. Nietzsche é o anti-Victor Hugo. O filósofo bigodudo transforma todos os sentimentos humanos em esterco, os bons e os ruins. O romancista francês vai amiúde entre os mais pobres, os rudes, os marginalizados e tira deles as mais sensíveis atitudes do bicho homem. É isso que eu queria dizer: Os Miseráveis é o que de melhor pode existir entre todos os sentimentos humanos. O pior dos homens guarda consigo a melhor das sensações, apenas não sabe como usá-los, porque a vida assim não permite. É o que faz de Os Miseráveis uma obra tão empolgante, tão cheia de vida e, por conseguinte, tão inesquecível: ela põe fé nas virtudes do ser humano em contraponto de suas fraquezas. Logo, acredita nele.

(alguém pode reclamar que estou colocando um filósofo e um romancista no mesmo barco, o que pode gerar distorções. E estou mesmo, uma vez que o que interessa aqui são os sentimentos humanos, e não a origem de onde elas são debatidas, seja no romance, na filosofia ou em qualquer outra área)

É aí que está a grande lição de Jean Veljean, o protagonista do livro. Eis o princípio do enredo: condenado a cinco anos nas galés (um sinônimo glamouroso de prisão) por roubar um pão quando faminto, Jean Valjean acaba preso por 19 anos, acumulados pelas várias tentativas de fuga. Ao sair, todos o repelem por ser ele um um ex-presidiário. É então que um padre bondoso o acolhe por uma noite. Asfixiado pelos calos das galés, João Valjean rouba os talheres de prata da casa de seu hospedeiro. Quando pego pela polícia, Valjean é levado até a casa deste mesmo padre, que diz aos policiais que a prataria não foi roubada, e sim que dera a ele. Quando soltam Jean Valjean, a lição do padre muda completamente sua vida e o transforma em um sujeito que leva ao extremo sua bondade e suas virtudes.

A hombridade talvez seja a maior das virtudes, porque dela vêm naturalmente muitas outras. Veja bem, quando falo de hombridade, não estou falando de chegar no bar, virar um litro de uísque e dar cadeirada em todo mundo. Não. Falo da macheza que independe do sexo da pessoa: aquele sentimento de se fazer a coisa correta na hora correta, por mais dolorosa que seja, e criar, cultivar e lutar por seus princípios. No fundo, é isso que fica. É o exemplo de Jean Valjean. É o que todos deveríamos seguir.

Sim, Os Miseráveis é um livro infanto-juvenil e contém todos os exageros e cacoetes que um herói pode proporcionar. Mas nada disso anula o âmago da questão: enquanto, por exemplo, Nietzsche rugia com os intestinos, Victor Hugo escrevia com o coração - e pode rir deste clichê. Que me perdoem os céticos e os patrulheiros da cultura excessiva, mas Os Miseráveis é um dos dez grandes livros que li na vida. Victor Hugo bem valheria um aperto de mão.

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