segunda-feira, 26 de junho de 2006

CINCO COPAS DO MUNDO (parte dois)

1998. Na França, a Copa. Na província, o colegial. Dois mundos ligados pela tecnologia (espaço reservado para uma ode à modernidade que os mais apedeutas gostam de fazer). Era o Brasil que faria a abertura da Copa em Paris contra a Escócia de Sean Connery, que estava no Stade de France para assistir a partida e exibir a tatuagem com a inscrição "Scotland Forever" em seu braço. Eu já era fã de James Bond e bancava o durão, mas estava apaixonado por uma morena de pele bem branca, nariz empinado e pintinhas na face chamada Pâmela. Para mim todas as pessoas belas eram pâmelas, havia pâmelas em todos os lugares, e os olhos escuros e vivos dela ainda merecem lugar cativo na parede da minha memória. 

E nada como um Mundial na França para quem está perdidamente apaixonado. Lembro que a escola nos liberou mais cedo, e eu fui batucando Le vie en rose em ritmo de samba até em casa, porque no dia anterior tinha visto um cara fazer igual na TV. Até a esquina fui acompanhado pelo amigo Ednílson Naripeta, o maior nariz que conheci e cujo apelido me gabo de ter fornecido. O Brasil ganhou da Escócia por 2 a 1, com gol estranhíssimo de Cafu. Antes da peleja, os escoceses entraram em campo de kilt para saudar sua torcida. Depois do jogo, o repórter da Globo na porta do estádio fez um link ao vivo e, atrás dele, vários escoceses bêbados fizeram um bundão coletivo. 

Um mês depois, a França fazia três no Brasil, que não faria nenhum, enquanto a Pâmela tinha um affair com um jogador de vôlei da minha turma, rival de tamanho e de paixão desse reles escriba. Dizem que Ronaldinho teve uma convulsão antes da final. Eu também acabaria tendo a minha quando me peguei assim, tão desconsoladamente de coração partido. 

*** 

2002. Futebol não rima com Coréia nem com Japão. Talvez isso tenha relação com a pior fase da vida de um sujeito recém-chegado à faculdade e à cidade grande. Problemas de saúde e muito mais. A Copa passou em branco na minha cabeça. O melhor retrato daquela fase ocorreu no dia da final, após Cafu levantar a taça em Yokohama depois dos 2 a 0 na Alemanha. Queria comemorar a única coisa comemorável naqueles tempos pessoalmente difíceis. Peguei a bengala e fui devagarinho até a esquina de casa. No terceiro carro que passou buzinando, uma mulher enfiou a cabeça pra fora e gritou, olhos sarcásticos em mim: 

- Ô Alemão! Enfia essa bengala no cu! 

Voltei para casa em silêncio, divagando sobre os possíveis fatores que então me faziam inviável enquanto ser humano. 

*** 

2006. Arena de Munique lotada para ver Alemanha e Costa Rica abrirem a décima oitava Copa do Mundo. Mais ou menos assim: 

- A PORRA DAS TAGS DE PUBLICIDADE TÂO COMENDO PARTE DO HOME! CADÊ A PORRA DA WEBMASTER! NÂO TÀ ONLINE!?!?!?!? ALGUÉM TEM O TELEFONE DA WEBMASTER? OS TIMES TÂO ENTRANDO EM CAMPO! AI CARALHO!!!! QUE ZICA É ESSA COM A PORRA DO JAVASCRIPT???? O MEDIA PLAYER NÂO TÀ TOCANDO O HINO DA COSTA RICA!!! 

Desce o pano.

Foto: Flagrante de França x Brasil, 12 de junho de 1998, em Paris 

sexta-feira, 16 de junho de 2006

CINCO COPAS DO MUNDO

1990. Terceira série do primário. O Elias da Vila Ana, os piores dentes que vi na vida, entra na sala atrasado. 

- Ô ´sora, mal aí. Tava vendo essa história aí de copa do mundo. 

Sentou do meu lado, que perguntei de que raios ele tava falando. 

- É, cê não gosta de futebol, né? Tá rolando a Argentina contra uns tal de Camarão. Mundial. Na Itália. 

Vi o Elias uns cinco anos depois, era carregador de pacotes do Furgeri, mercadinho na esquina da minha casa. Eu ia comprar Mirinda laranja, que adorava. Ele me sorriu, já não tinha mais os dentes da frente. Lembrei daquele dia da terceira série, o dia em que a Argentina perdeu por 1 a 0 para Camarões na abertura da Copa de 1990, em Milão, com gol de François Oman-Biyik. Foi o dia em que comecei a gostar de futebol. Acenei com a cabeça. 

Dizem que o Elias virou bandido. 

*** 

1994. Sétima série, 13 anos nas costas, mais de 1.80 de altura, penugem na cara esboçando uma barba. Futebol e espionar casais transando na rua da minha casa eram minha vida. Nunca quatro anos demoraram tanto a passar, até aquele dia de junho em que Alemanha e Bolívia entraram em campo, e eu quase chorei. A Copa começava com um gol solitário de Klinsmann para a Alemanha, para terminar com Baggio a chutar a bola para o espaço. 

Pela primeira vez trocava figurinhas de um mundial. Cheguei a vender algumas repetidas. Em uma ocasião dessas, trouxe para casa a primeira moeda de um real. Fiquei feliz com o fato e mostrei a moeda a meu pai, que gritou: "GRANDE MERDA ESSA PORRA DE REAL, FHC TRAÍRA FILHODAPUTA!". 

Fome, miséria e imcompreensão. O Brasil era "treta" campeão. 

TO BE CONTINUED...


Foto: Flagrante de Argentina x Camarões, 8 de junho de 1990, em Milão 

domingo, 4 de junho de 2006

PROVOCAÇÕES

A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. 

A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. 

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. 

Foram lhe provocando por toda a vida. 

Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. 

Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. 

Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. 

Estavam lhe provocando. 

Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. 

Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. 

Terra era o que não faltava. 

Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. 

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. 

Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. 

Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: 

- Violência, não!" 


* De Luís Fernando Veríssimo. Tirado do site do programa Provocações, divertimento pra horas seguidas.