O Dilúvio
Ia cair, diziam todas as previsões, uma chuvinha de verão despretensiosa. Mas Noé, uma espécie de Narciso Vernizi da época, dizia que todos presenciariam um toró descomunal. Ninguém botava muita fé no velhinho, mas ele já foi logo juntando umas madeiras num canto pra montar sua arca, de modo que, quando a chuva chegou, ele era o único equipado pra agüentar o aguaceiro. E, quando as nuvens deram o ar de sua graça, a arca estava lá, prontinha. Até que era aconchegante.
Noé tinha certeza que essa chuva ia matar todo mundo, que não ia sobrar nada. E, devido ao seu exagerado apego por animais, Noé quis porque quis juntar a maior bicharada junto com ele no barco. Aí a coisa ficou feia. Tinha um casal de cada coisa: cachorro, gato, elefante, leão, ovelha, papagaio, vaca, girafa, cobra, jacaré e o que mais o ilustre leitor puder imaginar.
Vale aqui uma dado importante, fundamental até o término desta fábula: Noé era um paizão coruja. Gostava tanto de sua filha que a colocou para comandar o zoológico. A moça estava empolgadíssima, pois já trabalhara em uma grande editora local como monitora de Recursos Humanos e pretendia posicionar seu talento a serviço da embarcação.
Quando a chuva chegou, Noé e sua filha botaram o zoológico pra dentro. Muitas pessoas imploraram pra entrar na arca do velhinho, mas ele disse que agora não adiantava mais. E lá dentro ele juntou todos os animais no saguão principal para que sua filha pudesse ministrar uma palestra ao grupo.
Sim, uma palestra. As palavras da moça giraram em torno do tema “A flexibilização dos meios no ambiente pessoal e profissional”, e tinha como objetivo dinamizar as ações que dali por diante seriam tomadas pelos animais. “Nós precisamos estar criando um ambiente profícuo e palatável à boa convivência dentro da embarcação”, expelia a RH. E, a fim de sociabilizar todos a bordo, a moça sociabilizou atividades sociabilizantes e pediu para que a turma se misturasse a fim de “estar dinamizando o ambiente”. Dali em diante, esta seria a norma. Assim, o leão foi com a ovelha brincar com papel sulfite e lápis-de-cor, o macaco e a cobra fariam polichinelos periódicos para exercitarem-se e as girafas e os tatus foram encarregados de fazer dobraduras de papel crepom, com o intuito de estimular a criatividade. Para o papagaio sobrou treinar um dueto de latidos com o boi, para que eles sentissem como é a função do outro - no caso, o cachorro. A dupla faria uma apresentação ao restante da arca quando estivessem afinados. Assim, na visão da RH, todos se conheceriam, respeitariam os limites alheios e a arca seria uma grande família. Ainda sobre esta teoria, a filha de Noé ordenou que todos os carnívoros comeriam somente vegetais a partir de então, deixando répteis e felinos fazendo beicinho.
Obviamente as coisas não eram tão rudimentares assim. O que era para ser um cruzeiro de quarenta dias e quarenta noites foi aos poucos se tornando um pesadelo. O primeiro grande pepino surgiu quando o leão degustou a ovelha quando deveria desenhar coisinhas bucólicas com ela. E o que é pior: a ovelha estava há muito sem tosar, e os chumaços de pêlo causaram certa deselegância gástrica no famélico felino.
Pouco tempo depois, a cobra se recusou a fazer polichinelos alegando que não tinha pernas ou patas para tal. A RH dizia que isso não era motivo para desanimar, e obrigou a cobra a ler alguns livros de motivação pessoal do Lair Ribeiro. A cobra leu o livro e suicidou-se em retaliação.
Aí a arca virou um bumba-meu-boi. Quem não descambou pro lado do sarcasmo virou catatônico-depressivo. O papagaio e o boi seguiram a primeira vertente: no dia da apresentação de ambos, em vez de latidos os demais animais assistiram a um festival de piadas sobre monitoras de RH. A filha de Noé ficou estupefata. Não admitia que seus conhecimentos fossem ridicularizados por aquele bando de bichos irracionais.
Mas o mesmo não pode ser dito das girafas e dos tatus. A diferença de tamanho entre os casais era discrepante. Como tinham que agir em conjunto para fazer as dobraduras de papel crepom, uma girafa teve um torcicolo mortal e caiu dura no chão em forma de vírgula. Os babuínos, ensandecidos com o clima de estupidez generalizada imposto pela RH, se juntaram em volta da falecida e a improvisaram como um bambolê. Passaram a noite imitando John Travolta e Olívia Newton-John. O casal de tatus, coitados, olhava para as dobraduras catatônicos e nelas escreviam em câmera lenta:
- “EU..........QUERO........MINHA............MÃE”.
Epílogo da história: quarenta dias e quarenta noites depois, os carnívoros comeram os não-carnívoros, e quando estes acabaram, começaram a roer as estruturas da arca. Morreram de congestão.
Ninguém quis degustar a RH. O leão, o mais sábio dos carnívoros, havia lido uma vez que deve-se comer um adversário derrotado, pois os conhecimentos deste seriam transmitidos para ele. A moça permaneceu intacta.
Ao final do dilúvio, restavam Noé, a RH e uma arca parcialmente destruída. O pai levantou as mãos para o céu, desolado: “Aonde foi que eu errei?” Foi seu último suspiro.
Sua filha foi a única sobrevivente para contar esta história, levemente alterada no decorrer dos tempos.