
Houve uma época em que até as músicas ruins eram boas, mas isso foi no tempo em que a camada de ozônio ainda existia. O hit do Largo da Batata de ontem muitas vezes guardava alguma sensibilidade musical, coisa que já não ocorre no mesmo de hoje em dia. Tirando alguns casos em que é possível rir para não chorar - como naquela música do Alexandre Pires que começa com a frase "Tô fazendo amor com outra pessoa" - a regra geral é, como diria Fausto Wolff, matar o cantor e chamar o garçom, tanto na letra quanto na música. Veja o Frank Aguiar, o sujeito que mais vende discos no Brasil, que, para disfarçar que esqueceu a letra, emenda um gritinho pra lá de esquisito, que lhe rendeu o apelido de "Cachorrão". Pois a classe média, que outrora se vangloriava de estar um nível cultural acima da plebe, hoje vê seus filhos ouvindo Inimigos da HP em sua Saveiro tunada na avenida principal da cidade no domingo de tarde.
Mas antigamente as empregadas domésticas ouviam Odair José. Eram os anos 70 e 80 e o Brasil assumia sua derrota vivendo sem medo de ser infeliz. As músicas de Odair José e congêneres falavam de paixão por putas, amores desastrados, dor de corno, sexo sujo, briga de bar, conhaque Palhinha e cachacinha em lata, enfim, do Brasil, esse país que o FHC não cita em suas conversas com seu amigo Bill Clinton.
São engraçadíssimas, mas, se ouvirmos com mais atenção e tentando entender o contexto, dá pra entender que elas tem lá sua profundidade, apesar do caráter aparentemente único grotesco. Gosto de ouvir duas do Odair José: Vou tirar você desse lugar, onde Odair - olha só a intimidade com o ídolo - relata a experiência de ir a um meretrício "só para me distrair", mas se apaixona perdidamente pela moça. Aí ele volta ao recinto para prometer uma vida digna a ela, e ambos organizam seus sonhos e compartilham suas frustrações em busca de um futuro melhor.
Outra música dele muito peculiar é a Revista Proibida. O sujeito compra "uma revista proibida, uma revista só para homens". E, provavelmente no banheiro, pronto para descabelar o palhaço, ele dá de cara com a ex-namorada nua na primeira página, o que o faz sentir saudades dela e descobrir o quanto ainda a ama. Agora perceba a sutileza do refrão:
Quando você foi embora, não quis me dizer
Vendo você na revista, eu consigo entender
Musicalmente, essas duas canções não devem muito aos Lionel Ritchie e Barry White da mesma época. Fossem cantadas em inglês, a classe média as engoliria com facilidade, e então seria comum ouvir Odair José na Alpha FM, Antena 1 e outras rádios que fazem sucesso nos elevadores por aí.
Mas, sinceramente, o maior legado desses músicos para nós, estrangeiros de classe média rodeada por um país de favelas, é saber que as pessoas desse mundo ao mesmo tempo perto e distante possuem mais coisas parecidas conosco do que gostaríamos de saber. É pra parar de achar que temos que tampar o nariz para entender a mulher que limpa o nosso banheiro às quintas-feiras, como se ela estivesse abaixo do nosso cachorro. Mude o contexto, mude o cenário, e eles estão ali, iguaizinhos a você, com os mesmos sentimentos. Ouvindo música brega, eu entendi. Mas, com o perdão do trocadilho com a música, vendo na revista Veja eu não consigo entender.